Na última quinta-feira, dia cinco, o Senado promulgou, com pompa e circunstância, a PEC do trabalho escravo que prevê o confisco de imóveis rurais e urbanos onde for flagrado trabalho escravo. Com direito até a cantoria da Alcione na tribuna.
Parece muita vela prá pouco defunto. Ainda há um longo caminho a
percorrer para que o confisco de propriedades torne-se de fato uma
ameaça real aos escravagistas modernos.
E, como sempre, as dificuldades estarão na legislação que,
teoricamente, dará consistência à nova PEC. Toda a bancada ruralista no
congresso naturalmente atuará para que a legislação superveniente torne a
PEC de pouca serventia.
O primeiro e principal ponto é o próprio conceito de trabalho escravo. Segundo os organismos internacionais, sobretudo a OIT, o que caracteriza
o trabalho escravo é a impossibilidade de o trabalhador romper seu
vínculo de trabalho com o empregador, quer seja por coação física,
inclusive ameaças, impossibilidade de locomoção, servidão de dívida, retenção de documentos
ou quaisquer outros meios que impeçam o trabalhador de arrumar sua
trouxa e ir embora. Mais recentemente, a OIT incluiu o tráfico de
pessoas como uma variação de trabalho escravo.
***
No Brasil, o trabalho escravo foi definido no artigo 149 do código penal que diz literalmente:
Art. 149. Reduzir
alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos
forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Atualmente, os tribunais utilizam as disposições do artigo 149 do código penal nos julgamentos
de trabalho escravo. Mas a PEC promulgada prevê uma legislação
complementar que deverá conceituar de forma clara o que é o “trabalho
escravo”. E esse é o caminho que a, digamos, “bancada escravagista”
busca para tornar inócua a PEC promulgada. E com uma lógica jurídica
bastante sólida. A OIT e todos os diplomas e protocolos reconhecidos internacionalmente
na área de relações do trabalho limitam o reconhecimento do trabalho
forçado ou escravo às situações em que há algum tipo de cerceamento à
liberdade do empregado de deixar o trabalho. Para ser juridicamente
coerente a legislação a ser elaborada para instrumentalizar a PEC deve
ater-se também apenas à supressão da liberdade de ir e vir do empregado.
As jornadas exaustivas de trabalho e condições de irregularidades ou inadequadas já estão hoje cobertas pela legislação trabalhista
regular – a CLT e as Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho.
Não haveria razão, portanto, para que elas sejam inclusas no conceito
do trabalho escravo. É possível, portanto, que legislação que venha
regulamentar a PEC do trabalho escravo torne letra morta o artigo 149 do
Código Penal. E aí teremos, ao invés de um avanço, um retrocesso.
***
Outro ponto a considerar na futura regulamentação é o trabalho
escravo urbano. Embora ele esteja mencionado na PEC, o que se percebe é
que o legislador pensou exclusivamente o trabalho escravo rural e, na
última hora, estendeu os mesmos conceitos ao urbano. O trabalho escravo
urbano tem outras características e tem que ser tratado de forma muito
diferente. O que fazer no caso das confecções que empregam imigrantes bolivianos e que fornecem às grandes redes de varejo, como C&A, Lojas Marisa, M.Officer, entre outras? Os fiscais poderão confiscar as máquinas de costura,
mas os imóveis provavelmente serão alugados de terceiros que não
poderão ser punidos pelas atividades ilícitas dos locatários. E as
grandes redes de varejo? Como serão punidas? A rigor, são cúmplices do
crime cometido. Será que algum procurador do Ministério do Trabalha
pensa como viável “estatizar” alguma dessas redes de varejo?
As mesmas dificuldades teremos com as construtoras, grandes usuárias
de trabalho escravo em suas obras. Elas utilizam o subterfúgio da
terceirização e quarteirização e, a menos que a legislação vindoura
cerque de forma eficiente esses mecanismos escusos, ficarão impunes.
***
Portanto, teremos uma nova queda
de braços para a regulamentação da PEC do trabalho escravo, o que
poderá levar algumas décadas. Para que se tenha uma ideia, a aprovação
do texto básico da PEC levou 19 anos.
Já existe em andamento um projeto de regulamentação (PL 432/2013) do
senador Rogério Jucá. Logo de cara, o projeto de Romero Jucá ressalva
que “o mero descumprimento da legislação trabalhista” não configura
trabalho escravo. Com esse texto, a “jornada exaustiva” e as “condições
inadequadas de trabalho” previstas no artigo 149 do código penal passam a
ser mero descumprimento da legislação trabalhista – que dispõe sobre
esses temas – deixando de ser um instrumento de caracterização do
trabalho escravo.
Assim, a cantoria da Alcione e os rojões de senadores, procuradores,
ativistas e sindicalistas reunidos na última quinta-feira podem ter
sido em vão. Mais que isso: pode ter sido uma brecha para a cavalaria da brigada escravagista do congresso, sob o comando da “generala” Katia Abreu.
Caiubi Miranda
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