terça-feira, 10 de junho de 2014

A pouca serventia da PEC do trabalho escravo,

Via  blog Direitos Humanos no Trabalho

  Por Caiubi Miranda

Na última quinta-feira, dia cinco, o Senado promulgou, com pompa e circunstância, a PEC do trabalho escravo que prevê o confisco de imóveis rurais e urbanos onde for flagrado trabalho escravo.  Com direito até a cantoria da Alcione na tribuna.
Parece muita vela prá pouco defunto.  Ainda há um longo caminho a percorrer para que o confisco de propriedades torne-se de fato uma ameaça real aos escravagistas modernos. E, como sempre, as dificuldades estarão na legislação que, teoricamente, dará consistência à nova PEC. Toda a bancada ruralista no congresso naturalmente atuará para que a legislação superveniente torne a PEC de pouca serventia.
O primeiro e principal ponto é o próprio conceito de trabalho escravo.  Segundo os organismos internacionais, sobretudo a OIT, o que caracteriza o trabalho escravo é a impossibilidade de o trabalhador romper seu vínculo de trabalho com o empregador, quer seja por coação física, inclusive ameaças, impossibilidade de locomoção, servidão de dívida, retenção de documentos ou quaisquer outros meios que impeçam o trabalhador de arrumar sua trouxa e ir embora. Mais recentemente, a OIT incluiu o tráfico de pessoas como uma variação de trabalho escravo.
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No Brasil, o trabalho escravo foi definido no artigo 149 do código penal que diz literalmente:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Atualmente, os tribunais utilizam as disposições do artigo 149 do código penal nos julgamentos de trabalho escravo. Mas a PEC promulgada prevê uma legislação complementar que deverá conceituar de forma clara o que é o “trabalho escravo”. E esse é o caminho que a, digamos, “bancada escravagista” busca para tornar inócua a PEC promulgada. E com uma lógica jurídica bastante sólida. A OIT e todos os diplomas e protocolos reconhecidos internacionalmente na área de relações do trabalho limitam o reconhecimento do trabalho forçado ou escravo às situações em que há algum tipo de cerceamento à liberdade do empregado de deixar o trabalho. Para ser juridicamente coerente a legislação a ser elaborada para instrumentalizar a PEC deve ater-se também apenas à supressão da liberdade de ir e vir do empregado.
As jornadas exaustivas de trabalho e condições de irregularidades ou inadequadas já estão hoje cobertas pela legislação trabalhista regular – a CLT e as Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho. Não haveria razão, portanto, para que elas sejam inclusas no conceito do trabalho escravo. É possível, portanto, que legislação que venha regulamentar a PEC do trabalho escravo torne letra morta o artigo 149 do Código Penal. E aí teremos, ao invés de um avanço, um retrocesso.
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Outro ponto a considerar na futura regulamentação é o trabalho escravo urbano. Embora ele esteja mencionado na PEC, o que se percebe é que o legislador pensou exclusivamente o trabalho escravo rural e, na última hora, estendeu os mesmos conceitos ao urbano. O trabalho escravo urbano tem outras características e tem que ser tratado de forma muito diferente. O que fazer no caso das confecções que empregam imigrantes bolivianos e que fornecem às grandes redes de varejo, como C&A, Lojas Marisa, M.Officer, entre outras?  Os fiscais poderão confiscar as máquinas de costura, mas os imóveis provavelmente serão alugados de terceiros que não poderão ser punidos pelas atividades ilícitas dos locatários. E as grandes redes de varejo? Como serão punidas?  A rigor, são cúmplices do crime cometido. Será que algum procurador do Ministério do Trabalha pensa como viável “estatizar” alguma dessas redes de varejo?
As mesmas dificuldades teremos com as construtoras, grandes usuárias de trabalho escravo em suas obras. Elas utilizam o subterfúgio da terceirização e quarteirização e, a menos que a legislação vindoura cerque de forma eficiente esses mecanismos escusos, ficarão impunes.
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Portanto, teremos uma nova queda de braços para a regulamentação da PEC do trabalho escravo, o que poderá levar algumas décadas. Para que se tenha uma ideia, a aprovação do texto básico da PEC levou 19 anos.
Já existe em andamento um projeto de regulamentação  (PL 432/2013) do senador Rogério Jucá. Logo de cara, o projeto de Romero Jucá ressalva que “o mero descumprimento da legislação trabalhista” não configura trabalho escravo. Com esse texto, a “jornada exaustiva” e as “condições inadequadas de trabalho” previstas no artigo 149 do código penal passam a ser mero descumprimento da legislação trabalhista – que dispõe sobre esses temas – deixando de ser um instrumento de caracterização do trabalho escravo.
Assim,  a cantoria da Alcione e os rojões de senadores, procuradores, ativistas e sindicalistas reunidos na última quinta-feira podem ter sido em vão. Mais que isso: pode ter sido uma brecha para a cavalaria da brigada escravagista do congresso, sob o comando da “generala” Katia Abreu.
Caiubi Miranda

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