Por Guilherme Rossini
Dia 28 de outubro de 2014. Há dois dias, Dilma Roussef confirmava sua
reeleição, naquela que viria a ser conhecida como a "eleição mais
acirrada da história da democracia brasileira". Em discurso, a
candidata, agora Presidenta reeleita, exortava a sociedade brasileira
para a necessidade de implantação da tão sonhada "Reforma Política", a
ser efetivada mediante consulta popular, em nítida tentativa de incutir o
espírito repúblicano de democracia participativa no seio da sociedade
brasileira.
Dá-se início à sessão ordinária na Câmara dos Deputados.
Coloca-se, em pauta, o projeto de decreto legislativo para sustar a
execução do recém editado "Decreto n° 8243/14", responsável por
instituir a Política Nacional de Participação Social - PNPS e o Sistema
Nacional de Participação Social - SNPS.
Ato contínuo, a Casa Legislativa, em votação simbólica, aprova a derrubada do referido ato regulamentar.
Pede a palavra o Deputado Mendonça Filho (DEM/PE): "O projeto tem
viés autoritário. Impõe, via decreto presidencial, um modelo de consulta
à população que é definido pelo Poder Executivo. É uma forma
autocrática, autoritária, passando por cima do Parlamento, do Congresso
Nacional, da Casa do Povo, de estabelecer mecanismos de ouvir a
sociedade".
Em seguida, com a palavra, o Deputado Alceu Moreira (PMDB/RS): "Os
conselhos criados serão comandados 'da antessala da Presidência da
República' ".
Mas, afinal, o que prevê o polêmico Decreto? Nada mais senão a
criação de mecanismos diretos de participação e controle popular da
Administração Pública, mediante a consolidação de comissões e conselhos
populares, compostos por representantes eleitos ou indicados pela
sociedade civil (arts. 10 e 11, Decreto n° 8243/14) e coordenados pela
Secretaria-Geral da Presidência da República (art. 7°, Decreto n°
8243/14).
Assim prevê o art. 3° do referido Decreto, ao insculpir as diretrizes
gerais da Política Nacional de Participação Social: "Art. 3º São
diretrizes gerais da PNPS:I - reconhecimento da participação social como
direito do cidadão e expressão de sua autonomia;II -
complementariedade, transversalidade e integração entre mecanismos e
instâncias da democracia representativa, participativa e direta;III -
solidariedade, cooperação e respeito à diversidade de etnia, raça,
cultura, geração, origem, sexo, orientação sexual, religião e condição
social, econômica ou de deficiência, para a construção de valores de
cidadania e de inclusão social;IV - direito à informação, à
transparência e ao controle social nas ações públicas, com uso de
linguagem simples e objetiva, consideradas as características e o idioma
da população a que se dirige;V - valorização da educação para a
cidadania ativa;VI - autonomia, livre funcionamento e independência das
organizações da sociedade civil; e VII - ampliação dos mecanismos de
controle social".
O art. 4°, a seu turno, dispõe sobre os seus objetivos: "Art. 4º
São objetivos da PNPS, entre outros:I - consolidar a participação
social como método de governo;II - promover a articulação das instâncias
e dos mecanismos de participação social;III - aprimorar a relação do
governo federal com a sociedade civil, respeitando a autonomia das
partes;IV - promover e consolidar a adoção de mecanismos de participação
social nas políticas e programas de governo federal;V - desenvolver
mecanismos de participação social nas etapas do ciclo de planejamento e
orçamento;VI - incentivar o uso e o desenvolvimento de metodologias que
incorporem múltiplas formas de expressão e linguagens de participação
social, por meio da internet, com a adoção de tecnologias livres de
comunicação e informação, especialmente, softwares e aplicações, tais
como códigos fonte livres e auditáveis, ou os disponíveis no Portal do
Software Público Brasileiro;VII - desenvolver mecanismos de participação
social acessíveis aos grupos sociais historicamente excluídos e aos
vulneráveis;VIII - incentivar e promover ações e programas de apoio
institucional, formação e qualificação em participação social para
agentes públicos e sociedade civil; e IX - incentivar a participação
social nos entes federados".
Da literalidade do "polêmico" diploma normativo, não se depreende
qualquer novidade em termos de juridicidade. Ora, a ampliação de
mecanismos diretos de participação e de controle do cidadão no que se
relaciona ao trato com a coisa pública constitui-se em tema recorrente e
pacificado, tanto no seio do ordenamento jurídico-normativo brasileiro,
bem como no da doutrina pátria.
À guisa de exemplo, registrem-se: (i) a obrigatoriedade de realização
de audiências públicas, durante o processo de elaboração e discussão
dos projetos de leis orçamentárias (art. 48, parágrafo único, I, da Lei
de Responsabilidade Fiscal-LRF); (ii) a disponibilidade das contas do
Chefe do Executivo, durante todo o exercício financeiro, para a consulta
e apreciação pelos cidadãos e instituições da sociedade (art. 49, da
LRF); (iii) a necessidade de transparência e publicidade na gestão
pública (art. 6°, da Lei de Acesso à Informação); (iv) a obrigatoriedade
de que sejam promovidas audiências públicas com a participação da
população no processo de elaboração do Plano Diretor, bem como na
fiscalização de sua implementação (art. 40, §4°, I, do Estatuto da
Cidade); (v) a previsão de que sejam criados Conselhos Populares
Municipais, a fim de que seja assegurada a adequada participação de
todos os cidadãos nas decisões que envolvem políticas públicas (art. 8°
da Lei Orgânica Municipal de São Paulo) - instituto jurídico adotado,
sem ressalvas, em diversos outros Municípios espalhados pela Federação
-; etc.
Nesse diapasão, conclui o cidadão mais preocupado com a gestão
pública: "se é certo que tais mecanismos se mostram mais frequentes por
ocasião da atuação do Poder Público Municipal, não é razoável de se
supor que deva haver sua completa desconsideração por ocasião da atuação
do Poder Público Federal". E assim pensou a Presidenta, ao editar o
multicitado decreto.
Ao editá-lo, agiu com mesmo espírito público que agora a move pelo
desejo de reformar, amplamente, o Sistema Político Brasileiro. Mesmo
desejo que a fez crer que a melhor saída para tanto se trata da
submissão de tal Reforma ao crivo popular, a fim de que o cidadão seja
parte ativa, e não passiva, no que concerne às decisões que irão reger
os futuros rumos da nação brasileira. A vontade é grande, não obstante
os desafios sejam imensuráveis, ao que permite concluir a sessão
ordinária da Câmara dos Deputados de 28 de outubro de 2014.
Para tanto, a Presidenta deverá aprender a dialogar com o Congresso
Nacional, a fim de que este possa compreender a real dimensão de seu
múnus constitucional: o papel de representação da sociedade brasileira e
dos Estados Federados. Nesse sentido, doravante, mister se faz não
permitir que este olvide a máxima fulcral e fundamental segundo a qual
"o poder genuinamente soberano corresponde àquele que emana do povo,
titular do Poder Constituinte!". Afinal, se a Câmara dos Deputados é
Casa Legislativa representativa do povo, por excelência, tal como
aquilatado no art. 45, da CF/88, não se submete ao azo que esta
descumpra a sua sina constitucional, ignorando o real significado do
papel que a sua atuação representa no processo democrático brasileiro.
Todavia, enquanto a sociedade brasileira aguarda, ansiosamente, pelo
desfecho positivo de tal árduo processo, torçamos para que o Senado
Federal rejeite o malfadado projeto que visa a derrubar o Decreto
n°8243/14, a fim de que o governo possa continuar a ser feito não apenas
para o povo, mas pelo povo, no sentido mais genuíno da proposta que ora
se apresenta.
*Guilherme Rossini Martins. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Advogado em São Paulo.