O Jornal de todos Brasis
por Aldo Fornazieri
A operação Lava Jato é mais obra dos Procuradores da
República do que do juiz Sérgio Moro. Este foi apenas o julgador, o
sentenciador, o manifestador de juízos de valor prévios em seus despachos para
a realização de operações. Anunciava a culpa antes dos julgamentos. Mas todo o
edifício da Lava Jato foi erguido pelo Ministério Público Federal. Nestes
termos, a Lava Jato pode ser definida como uma rebelião procuradorista – em
certa medida, como uma rebelião do Estado contra o governo político.
Explique-se: procuradores, a Política Federal, a Receita Federal e juízes, que
constituem as equipes das diversas investigações, são agentes do Estado, ocupam
carreiras típicas de Estado. Os seus alvos são agentes políticos, operadores de
esquemas de lavagem de dinheiro que fazem as mediações entre os corruptores das
empresas que têm negócios com o Estado e os políticos que se corrompem e
beneficiam essas empresas com contratos superfaturados. Há nesse entremeio,
também funcionários de carreira do Estado ou funcionários concursados de
estatais.
Nessa rebelião do Estado contra o governo político existem
algumas similitudes e muitas diferenças entre a rebelião procuradorista e as
rebeliões tenentistas das décadas de 1920 e 1930. O tenentismo também vinha do
Estado – do Exército, particularmente – contra o governo político. Atacava as
oligarquias, a política do café com leite, prometia libertar e proteger o povo,
propugnava uma reforma política e novas instituições públicas, advogava a
reforma eleitoral com o fim do voto aberto e o voto de cabresto, pois, naquele
tempo, a eleição era uma coisa muito mais de poder do que de política. Um dos
grandes males do Brasil, para o tenentismo, era a corrupção.
Nestes pontos todos, há algumas fortes semelhanças entre as
teses do tenentismo e as teses do procuradorismo. O procuradorismo também
advoga novas instituições e se sente artífice das mesmas. Quer libertar o país
dos políticos corruptos e entende que a corrupção e sua impunidade são os
grandes males do país. A reforma política é uma petição recorrente desses
agentes do Estado, pois o sistema teria mazelas incuráveis. Se o tenentismo
algumas vezes fazia referência aos mais pobres e desvalidos e aos
trabalhadores, o procuradorismo é portador de um discurso genérico se remete
sempre à sociedade. Ambos, contudo, se irmanam no discurso fortemente
moralizante, tão a gosto das camadas médias.
Tal como o tenentismo, o procuradorismo se autoconcebe como
salvacionista. O tenentismo usava as armas para realizar a salvação. Suas
rebeliões foram derrotadas, mas seus ecos rebentaram na Revolução de 1930 e
muitos se incorporaram ao empreendimento autoritário-modernizador de Getúlio
Vargas. O procuradorismo, com seus aliados do judiciário, comete vários abusos
para fazer valer a sua ideia de justiça. Em que pese o seu discurso de
imparcialidade e apartidarismo não conseguiu disfarçar o seu antipetismo.
Até agora, o procuradismo vem se mostrando vencedor, mas os
seus ecos resultaram no governo Temer constituído pelo núcleo mais corrupto do
Brasil. Getúlio Vargas, em que pese o autoritarismo, teve um sentido
modernizante e progressista: fundou o Estado moderno brasileiro e garantiu
direitos trabalhistas. O governo Temer tem um sentido retrógrado, conservador e
antipopular. A Revolução de 1930 manteve parte das velhas elites no poder, mas
abriu as portas para o ingresso de novas forças politicas e sociais. O governo
Temer expurga as novas forças políticas e sociais que emergiram após a Constituição
de 1988 e fecha o poder em uma aliança fundada entre o capital financeiro, o
agronegócio, o rentismo da classe média e os privilégios tributários dos que
ganham mais.
A ilusão do Estado
No Brasil, o Estado se constituiu numa grande ilusão, numa
grande miragem de todos aqueles que querem mudanças. Na verdade, o Estado vem
se revelando ao longo dos tempos o sepulcro das mudanças. No Brasil, o Estado
é, de forma indesmentível, um aparelho para constituir patrimônio,
independentemente de quem sejam os seus ocupantes. As elites econômicas, que
sempre detiveram o seu controle, consentem que parte do Estado seja ocupado
gerencialmente por forasteiros, como foi o caso do PT, desde que esses
forasteiros garantam o manejo do Estado como instrumento de constituição de
patrimônio dos mais ricos. As formas de assegurar a constituição de patrimônio
pelo Estado são diversas e variam no tempo. São incentivos e benefícios
fiscais, é a iniquidade fiscal, são as variadas formas de corrupção, são
políticas públicas orientadas para setores corporativos etc.
Tenentistas, comunistas, petistas, procuradoristas foram e
são alimentados pela ilusão do Estado. Todos acreditaram e acreditam que com
controle e a posse do Estado mudam a realidade social pela via do poder. A história
mostrou o contrário: o Estado muda os “revolucionários” de plantão. Os
tenentistas foram absorvidos pelo Estado. Os petistas foram absorvidos pelo
Estado e se tornaram uma força patrimonialista associada a outras forças como o
PMDB em convívio com outros partidos e com o PSDB, que foi um partido que
nasceu dentro do Estado e sobrevive às suas custas. Os partidos, no Brasil, são
patrimonialistas.
A elite econômica aceita o gerenciamento estatal do
patrimonialismo até o ponto em que não há riscos de perdas, seja por crises
fiscais ou por políticas altamente distributivas. Foi o que aconteceu com o PT:
o seu distributivismo não ameaçava o esquema patrimonialista, mas o partido não
soube gerir a conta fiscal levando a uma crise provocando o fim do pacto aceitável
para a elite. Alguém deveria pagara a conta. Como o governo Dilma não teve a
coragem de cobrar a conta nem de uns e nem de outros, foi derrubado.
Mas os petistas se sentiam seguros no poder, possuídos pela
mesma ilusão que alimentava o círculo de poder de Jango em 1964. A ideologia
revolucionária dos petistas, que havia germinado nas lutas contra s ditadura e
pela redemocratização, feneceu nos gabinetes do poder. Os petistas se
contentaram em exercer pequenos e vãos poderes, poderes que careciam de
conteúdo e de autoridade para promover mudanças efetivas. Nem tenentistas, nem
comunistas, nem petistas, nem procuradoristas sabem, realmente, onde está o
poder de fato. No Brasil o poder não serve, mas se serve para ser servido.
Os procuradoristas, pela sua natureza, são o Estado. Têm
privilégios salariais e garantias funcionais que os tenentes não tinham. O que
eles querem é uma assepsia do Estado para torná-lo funcional, técnico,
eficiente. O desfecho mais provável do movimento procuradorista não é a
aprovação das “Dez Medidas de Combate à Corrupção”, mas o surgimento de uma
legislação que limitará as investigações, as delações premiadas e protegerá os
corruptos. Bastará se consolidar o afastamento de Dilma e se verá movimentos
mais explícitos nesse sentido.
O PT tentou ser o protagonista de uma grande mudança no
Brasil. Mas ao ser absorvido pelo Estado, representou apenas o ápice de uma
forma de governar que foi hegemônica no Brasil a partir do governo JK. A forma
de governar ditada pelas grandes obras. Isto ocorreu na União, nos Estados e
nos Municípios. O poder político, financiado por um sistema corrupto, já não
decidia os grandes projetos para o Brasil. Quem decidia eram as grandes
construtoras, as grandes prestadoras de serviços para o Estado. Se o
procuradorismo promoveu um bem, este bem consistiu em dinamitar esta forma de
governar.
A Lava Jato pôs fim a Era das grandes obras. Nem o governo
Dilma, nem o PT, nem o PMDB e nem o PSDB perceberam o que aconteceu em 2013:
foi o início do fim de uma Era marcada pelo modo de governar através de grandes
obras. O que a sociedade quer é um novo modo de governar baseado em serviços
eficientes e na garanta de direitos.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e
Política de São Paulo.
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