Via Le Monde Diplomatique Brasil
Com a recusa das esquerdas no poder em querer ousar, o vácuo
da indignação ao sistema vem sendo preenchido pelo surgimento de
salvadores, empreendedores e justiceiros, vistos como antipolíticos
por: Gabriel de Barcelos
Há, em grande parte do mundo, um mal-estar e uma revolta contra o
sistema político tradicional, ambos expressos de diferentes maneiras na
sociedade. Isso não é novidade e já virou lugar-comum em várias análises
sobre a chamada crise da representação. A pergunta que se faz é: como
vem sendo e como será a ação das esquerdas diante destes processos?
Os partidos identificados de alguma forma com a esquerda ou com o
progressismo falharam em compreender a necessidade colocada por
transformação, seja com a manutenção de formas políticas distanciadas e
viciadas, seja através do consenso econômico liberal. No Brasil, Dilma
Rousseff e grande parte do petismo se negaram a entender 2013 e a
presidenta, ao ser reeleita, aplicou um programa de ajuste fiscal de
forma oposta ao que anunciava em campanha. Embora ela tenha sofrido um
impedimento ilegal, um golpe, não é possível ignorar a rejeição da
opinião pública e do eleitorado ao partido e, por tabela, à esquerda
brasileira. Nos EUA, a escolha de Hillary Clinton como candidata pelos
Democratas foi no mesmo sentido. A opção se deu em detrimento da mudança
pela esquerda, representada por Bernie Sanders, mantendo a fidelidade
ao “partido de Wall Street”.
Com a recusa das esquerdas no poder em querer ousar, o vácuo da
indignação ao sistema vem sendo preenchido pelo surgimento de
salvadores, empreendedores e justiceiros, vistos como antipolíticos.
Eles seriam os moralizadores, “para além disso tudo o que tá aí”,
portadores de uma competência e uma firmeza moral, características
ausentes nos representantes do poder, segundo esta perspectiva. Trump,
Bolsonaro, Dória, Moro e outros são alguns dos exemplos a serem citados.
Com exceção de medidas pontuais pouco empenhadas, o governo petista
subestimou as Jornadas de Junho e o sentimento anti-poder presente na
população brasileira e no mundo. A grande mídia, grupos da direita
organizada, o judiciário punitivista, as elites econômicas e políticas
foram, por outro lado, mais perspicazes. Estes atores conseguiram, de
forma contundente, canalizar o ódio a vilões bem desenhados.
Primeiramente, contra a inimiga no poder central, representado por
Dilma, mas principalmente na corrupção como grande mal, um desvio moral
dos políticos e do país. Obviamente, nada pretende ser alterado nas
estruturas que permitem a perpetuação da corrupção.
Enquanto a Lava Jato faz as suas ações espetaculares, a Odebrecht, por
exemplo, ganha “leniência” para continuar a participar de obras
públicas e contrair empréstimos, em troca de mais delações, mais bodes
expiatórios com as suas cabeças exibidas em praça pública.
Mas, vamos voltar um pouco no tempo. É importante lembrar que desde
os anos 90 até os dias de hoje, a crítica em relação à democracia
representativa, ao poder do Estado e ao sistema econômico neoliberal é
marca de uma série de movimentos sociais, em todo o planeta. Entre estas
lutas podemos citar, com inúmeras particularidades, o Zapatismo, o
Movimento Antiglobalização (ou Alterglobalização), os Indignados na
Espanha, a resistência grega à austeridade, a Primavera Árabe, o Occupy
Wall Street, o MPL (Movimento Passe Livre) e as ocupações de escola, no
Chile e no Brasil. Com importante participação de jovens, nestas
movimentações percebemos uma negação às estruturas hierárquicas e
centralizadas, a necessidade de participação, autonomia e expressão e o
enfrentamento a um sistema que vem gerando sucessivas crises econômicas,
desemprego e cortes sociais.
A esquerda institucional mundial durante estes mesmos períodos, por
sua vez, se confortou com o “fim da história” (que combatiam no
discurso) julgando ter chegado ao seu paraíso. Embora os avanços
alcançados sejam inegáveis, no Brasil e em outros lugares, ela se negou a
considerar as possibilidades de retrocessos, revezes eleitorais e
golpes. Conformada nos consensos e conciliações, tornou-se cega às
dinâmicas sociais, insatisfações e ameaças paralisando-se.
Ao observarmos este quadro mundial, é possível partir do entendimento
de que os inconformismos com o sistema vigente partem de raízes
semelhantes, mas colocam diferentes soluções. Hoje, no Brasil, o forte
sentimento anticorrupção aponta suas flechas contra os políticos, ao
menos no discurso. A alternativa posta é a punição e moralização do
país. O governo Temer, cercado de escândalos, fracassos e disputas
internas, está na berlinda. Os mesmos grupos que tiraram Dilma do poder
agora vão às ruas a favor das medidas propostas pelo Ministério Público,
contra a corrupção, entre outras bandeiras. Para alguns setores da
esquerda, é necessário dialogar com esta indignação de forte apelo
popular e colocar em pauta a corrupção. Embora a intenção seja legítima e
pressupostos como a necessidade de acabar com as “bolhas ideológicas”
sejam verdadeiros, a opção é também perigosa. Primeiramente por insistir
nos círculos viciosos, que elegem ações meramente punitivistas e
redentoras, mantendo (e mesmo reforçando) formas de reprodução do que se
combate. Além disso, a política da moral pode fortalecer as soluções
messiânicas futuras, de figuras salvadoras como Bolsonaro.
O mundo, tal como o conhecemos, da “história única” neoliberal e das
carcomidas estruturas políticas, está desmoronando. As crises econômicas
e de poder mostram que não há mais possibilidade para o acerto de
consensos que abriguem estas dimensões, tais como elas se desenvolveram
até hoje. Isso não quer dizer que o que virá será melhor. A tendência,
até agora, tem sido por soluções que saltam deste status quo
centrista pela via da extrema-direita. Num quadro avassalador para todos
que lutam por um mundo para além do capital e das injustiças, a tarefa
das esquerdas é árdua e com poucas possibilidades de mudança a curto
prazo. Contudo, no lugar de planejar somente a próxima manifestação ou a
próxima eleição, poderíamos pensar na produção da própria história, que
não acabou. Será que vamos continuar colocando como inevitável uma
lógica política excludente, onde as decisões estão apartadas das pessoas
“reais”? Nos conformaremos com um sistema econômico concentrador,
genocida e produtor de miséria? Não voltaremos a apontar as contradições
do capitalismo local e global (além de suas conexões), que afetam todo o
nosso modo de vida?
Neste sentido, as ocupações estudantis têm mostrado tanto novas
propostas de diálogo, auto-organização e fortalecimento dos sujeitos,
como resistências ao dilaceramento do “público”. Diferente de outras
iniciativas no campo da esquerda, foram os únicos movimentos que
causaram alguma preocupação nos grupos recentes organizados da direita.
Tanto é que o “desocupa” foi tirado em congresso do MBL (Movimento
Brasil Livre), com a participação de membros do governo Temer e figuras
importantes do pensamento conservador. O medo está tanto numa disputa
pela instabilidade de Temer, mas principalmente pelo reconhecimento de
outro projeto societário, numa centelha posta em novas gerações, que
escapa ao rolo compressor deles.
Portanto, espalhar nas lutas de todos o país este incômodo, através
da desobediência civil, da ação direta e de um repensar sobre as
relações de poder, torna-se urgente. Como afirma Leo Vinícius, se
“a esquerda no Brasil quer ser relevante novamente um dia, deve começar
desde agora a pensar em constituir formas práticas de redes de
solidariedade que sirvam de suporte à vida cada vez mais precarizada
(…)”. Portanto, agir radicalmente no mundo, produzindo pontes e
fortalecer, diante desta crise da economia e do poder, alternativas
reais, construídas entre a realidade concreta e a criação do novo, se
coloca, desta forma, como possibilidade de transformação. As grandes
civilizações caem, mas geram ruínas. Em cima delas, ou através delas,
pode-se erguer novas construções. O desafio maior talvez seja que estas
fundações apareçam frontalmente diferentes daquelas pertencentes às
sociedades que estão implodindo.
Foto: Agência Senado/cc
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