De Parauapebas, o jovem Jeferson da Silva Conceição tinha por hábito
andar sempre de dourado: cordões, anéis e pulseiras eram quase sempre
parte do seu figurino. Na cabeça, o chapéu inseparável lhe rendeu o
apelido de Cowboy. Pistoleiro, Jeferson ganhava a vida matando sob
encomenda e foi durante muito tempo sinônimo de terror no sul do Pará.
Sua atuação na região do Complexo Divino Pai Eterno, em São Félix do Xingu, é conhecida por todos os entrevistados pela Pública.
Ali, numa área pública de 9 mil hectares, 150 famílias de sem-terra
disputam com fazendeiros a criação de um assentamento desde 2008.
Uma rápida busca no site do Tribunal de Justiça paraense retorna
acusações de receptação, roubo, lesão corporal e homicídios contra
Cowboy. Ao menos duas mortes, uma tentativa de assassinato, além de
episódios de ameaça e tortura, ocorreram sob seu jugo em municípios
localizados no sul do estado. Com sua prisão em julho de 2014, um pouco
do submundo da pistolagem que assola o Complexo Pai Eterno veio à tona.
Exibicionismo macabro
Cowboy foi preso em 2014 depois de ter assaltado uma fazenda no
município de Sapucaia. Ao periciarem o celular dele, os policiais se
depararam com cenas de violência gravadas contra trabalhadores dentro do
Complexo Divino Pai Eterno. Cowboy aparecia nas imagens junto de seu
pai, Jaelson da Silva Conceição, seus comparsas no assalto que o levou à
prisão, Maicon Barros e Marcos do Carmo, e alguns funcionários das
fazendas do complexo.
Nas fotos, o pistoleiro posava com armamento pesado, como espingardas
calibre .12 e pistolas Magnum .44. Torturas praticadas na área também
estavam gravadas no celular. O agricultor Lourival Gonçalo de Sousa, o
“Índio” foi um dos torturados.
Segundo seu relato à polícia, Cowboy e Maicon invadiram seu lote em
abril de 2014. O primeiro teria gritado: “Polícia Civil! Eu sou delegado
de Rondonópolis [município da região] e sou acostumado a limpar a
fazenda de posseiros”. Índio correu, mas os pistoleiros atiraram até ele
cair. Com cinco tiros no tórax, braço, pescoço e estilhaços que o
atingiram na cabeça, sobreviveu para contar essa história.
Ele relata que os dois pistoleiros sacaram o celular antes de começar a torturá-lo. Um trecho do vídeo da tortura foi divulgado pela TV Record regional.
Na imagem, Cowboy aponta uma arma longa (aparentemente uma espingarda
calibre .12) para o agricultor e o chuta no chão. Índio diz que,
enquanto Cowboy o torturava, perguntava quem havia atirado no comandante
Carlão.
“Carlão” é o apelido de Eloir Rosa da Silva, ex-gerente de algumas
fazendas do Complexo Divino Pai Eterno. Em depoimento à polícia, Eloir
afirmou que se afastou da fazenda depois de ter sido baleado por
sem-terra da área durante uma emboscada. Ouvidos pela Pública, os agricultores negaram o episódio.
Eloir já havia sido preso em 2011, durante a operação policial “Oração ao Divino Pai Eterno”, relatada na primeira parte da reportagem – A espera que sangra o Divino Pai Eterno. Segundo a polícia, Carlão fazia parte de uma quadrilha de pistoleiros. Além disso, é réu em vários processos de homicídio.
Durante as apurações do caso, a Polícia Civil de Xinguara ouviu de um
vaqueiro do Complexo Divino Pai Eterno, que aparece nas imagens de
violência flagradas no celular de Cowboy, que os homens nas fotos eram
contratados para “expulsar os posseiros”.
Eles “até mesmo matavam alguns para amedrontá-los e saírem da fazenda
(sic)”, diz parte do depoimento. O vaqueiro contou ainda que os
pistoleiros foram contratados por Carlão num acordo que daria 100
alqueires da fazenda a Cowboy em troca do serviço.
Maicon, o parceiro, também receberia terras na área. Segundo a
testemunha, os episódios de violência ocorreram na área da fazenda
pertencente a Edson Coelho dos Santos, o “Cupim”, um dos latifundiários
que disputam a terra com os acampados. Por fim, o depoimento diz que o
avião que aparece nas fotos apreendidas pela polícia seria de Cupim.
Além dele, o fazendeiro Bruno Peres teria pago os serviços de
pistolagem.
Jessé de Jesus Pinto, um dos pistoleiros contratados, também foi
ouvido. Ele contou que foi convidado a ir à sede da fazenda de Cupim por
um comparsa de Cowboy. Quando chegou, soube que estava lá para
“expulsar posseiros da fazenda de Edson Cupim e Bruno Peres” e, para
isso, recebeu uma espingarda calibre .12 e uma pistola das mãos de
Cowboy. Segundo esse relato, Cowboy armou todos os pistoleiros e os
orientou a retirar os posseiros da área “sob ameaça e tiros”. Jessé
disse que as armas pertenciam aos fazendeiros e que eles lhe pagariam R$
2.500,00 pelos serviços de pistolagem.
Em depoimento, um trabalhador torturado pelos pistoleiros afirmou ter
ouvido Cowboy dizer que estava lá a mando dos mesmos fazendeiros da
área: Bruno Peres e Edson Cupim.
Cowboy e os fazendeiros foram denunciados pelo Ministério Público. A
ação ainda corre na 2ª Vara de Xinguara. Cupim chegou a ser preso
preventivamente em uma operação da Polícia Civil, mas foi solto por
insuficiência de provas. Houve um mandado nunca cumprido contra Bruno
Peres de Lima.
Amedrontar, torturar e matar
“Esses fazendeiros contratavam os pistoleiros e eles se armavam, tipo
uma milícia, e ficavam na região vários dias. O objetivo era
amedrontar, torturar e matar posseiros para afastar a ocupação da área”,
afirmou à Pública José Orimaldo Farias, delegado da Polícia Civil de Xinguara.
Após as investigações, a Polícia Civil da cidade deflagrou em 2014 a operação “Lindoeste Caboclo”
(Lindoeste é o nome de um dos distritos de São Félix próximos ao
complexo) e prendeu seis pessoas suspeitas de ligação com o esquema de
pistolagem.
Cowboy, que ficou alguns meses no presídio de Redenção, município do
sul paraense, fugiu ao ser transferido para Belém. Na viagem de mais de
1.000 km estado adentro, ocorreu uma fuga pouco provável.
Segundo a PM paraense, enquanto o carro estava em alta velocidade
numa BR local, o pistoleiro soltou as algemas, destrancou a grade e o
porta-malas da viatura e fugiu sem despertar a atenção. Nem os agentes
da Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará (Susipe)
nem a viatura da PM que escoltava o carro da Susipe viram nada.
Um inquérito para apurar a facilitação da fuga foi aberto, mas Cowboy
morreu antes de qualquer esclarecimento. Em março de 2015, o pistoleiro
de 22 anos foi executado com 15 tiros no município de Araguaína, no
Tocantins. Sua morte não foi esclarecida.
Carlão, o elo
Eloir Rosa da Silva, o Carlão, foi posto em liberdade em janeiro de
2015, depois de ter sido preso preventivamente pela Justiça nas
investigações dos crimes ligados a Cowboy. Meses depois, porém, ele se
envolveu em mais um episódio de violência na fazenda, que levou à morte o
agricultor Osvaldo Rodrigues Costa, membro da Associação Terra Nossa,
entidade que representa os trabalhadores da área, em novembro de 2015.
A Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) chegou ao nome de Carlão e
outros membros do Complexo Divino Pai Eterno quando identificaram
Romério Roberto de Araújo como parte do grupo. Romério era um conhecido
pistoleiro local.
Segundo o inquérito policial, ele estaria coordenando a ação de
pistolagem na região. Seu contratante, segundo o delegado titular da
Deca Valdivino Miranda, foi Bruno Peres. “A gente chegou à conclusão que
o fazendeiro chamado Bruno Peres teria contratado Romério para fazer
ameaças na região. Só que pelo que a gente percebeu a situação acabou
saindo do controle no dia”, conta o delegado. Segundo Miranda, os
pistoleiros iriam “dar uma pressão” nos trabalhadores. No dia, eles
mantiveram trabalhadores em cárcere privado. Quando os sem terra foram
resgatar seus colegas de acampamento, houve troca de tiros. Osvaldo foi
baleado e não resistiu aos ferimentos.
O celular periciado de Romério mostrou que ele mantinha contato com
os fazendeiros. O acerto dos trabalhos de pistolagem era feito
diretamente com Carlão e Bruno Peres de Lima, possuidor de algumas áreas
do complexo.
Bruno e Carlão são considerados foragidos pelo delegado Valdivino.
“Nós achamos conversas entre Bruno e Romério, entre Carlão e Romério.
Material de escuta telefônica e conversas de WhatsApp. O Bruno estava
com a área totalmente invadida e tinha interesse em desocupá-la”,
afirma. Carlão, Bruno e Romério são acusados de participação no
homicídio qualificado de Osvaldo Rodrigues Costa.
A Justiça paraense já decretou a prisão preventiva de Carlão, Bruno e Romério. No último dia 10, o juiz Leandro Cosentino negou um pedido de revogação da prisão movido pelo fazendeiro.
“Há indícios de autoria pois as investigações apontam que os
investigados [Carlão e Romério] e Bruno Peres de Lima são os
mandantes do crime que vitimou Osvaldo Rodrigues Costa”, diz a decisão
de Cosentino.
A Pública procurou os acusados para comentar as
acusações, mas eles se recusaram a dar entrevista. O advogado deles,
Sílvio Bezerra, negou qualquer participação de seus clientes.
O sistema da pistolagem
Dados levantados pelo historiador Airton dos Reis Pereira, doutor em
História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da
Universidade do Estado do Pará (Uepa), dão a dimensão da impunidade dos
crimes relacionados à luta pela terra no Pará.
Entre 1964 e 2010, ocorreram 914 assassinatos de trabalhadores,
advogados e agentes de pastorais relacionados à questão agrária. A
pesquisa foi feita com base nos arquivos da Comissão Pastoral da Terra
(CPT), órgão ligado à Igreja Católica que presta apoio aos trabalhadores
rurais na luta pela reforma agrária.
À época do levantamento, apenas 15 dos casos apurados (1,6% do total)
foram a julgamento: 11 mandantes e 13 executores foram condenados.
Destes, porém, apenas seis haviam sido detidos e as prisões ocorreram em
casos célebres, como o assassinato da missionária Dorothy Stang, o massacre de Eldorado do Carajás e a chacina da fazenda Ubá. De 2011 para cá, a CPT soma 52 mortes no campo paraense.
Os dados contabilizam somente os conflitos acompanhados pela CPT, mas
existem casos de trabalhadores mortos e abandonados na floresta,
enterrados em cemitérios clandestinos ou como indigentes.
“Até hoje, tirar a vida de uma liderança do campo aqui na região é
muito fácil, né? Por causa da impunidade e o apoio do Estado, que vai
legitimar as ações dos grandes proprietários de terra nessa violência
contra os trabalhadores rurais. É um sistema de pistolagem. O pistoleiro
só funciona porque você tem uma engrenagem”, diz Reis Pereira.
Em seu livro Do posseiro ao sem-terra: a luta pela terra no sul e sudeste do Pará (2015,
Editora UFPE), o historiador conta que a própria família foi expulsa
por pistoleiros no norte do Goiás (hoje Tocantins), em busca de terras.
Segundo o professor, os criminosos eram ligados a um ex-governador do
Tocantins. Para ele, a impunidade dos crimes, a morosidade da Justiça e
da regularização fundiária, a conivência do Judiciário com os
fazendeiros da região e a pouca cobertura dos casos pela imprensa são
alguns dos pilares que sustentam esse sistema de pistolagem.
Casos emblemáticos
A chacina da fazenda Ubá, em São Geraldo do Araguaia, é um exemplo da
morosidade do Judiciário paraense na solução desses casos. Ela ocorreu
em 1985, depois de pistoleiros comandados pelo temido Sebastião da
Teresona terem invadido um povoado de ocupantes da fazenda.
Em dois dias, oito trabalhadores foram mortos; entre as vítimas,
estava uma mulher de 18 anos não identificada que, segundo testemunhas,
estaria grávida. De acordo com um dos pistoleiros ouvidos pela polícia
em 1985, o grupo estava a mando do fazendeiro José Edmundo Ortiz
Vergolino.
Mesmo concluído o inquérito em 1986, o fazendeiro foi a julgamento 30 anos depois.
Na ocasião, Vergolino foi condenado a 152 anos de prisão e, atualmente,
cumpre pena em prisão domiciliar. O Estado brasileiro foi condenado
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) nesse caso.
A condenação incluiu um pedido público de desculpas do Estado brasileiro
pela omissão e morosidade em garantir a segurança dos trabalhadores.
Valdir Pereira de Araújo e Raimundo Nonato de Souza, dois pistoleiros
envolvidos, foram presos logo após a chacina, mas fugiram anos depois. Condenados a 199 anos de reclusão, eles permanecem foragidos.
Em outro caso notório,
o pistoleiro responsável pela morte de Expedito Ribeiro, ex-presidente
do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Rio Maria, município do
sul do Pará, ficou seis anos foragido. José Serafim Sales, o
“Barreirito”, preso em Boston, EUA,
em 2006, havia sido condenado em 1992 há 25 anos de reclusão pela morte
de Expedito, cumpriu oito anos, mas fugiu pela porta da frente da
Penitenciária Mariano Antunes, em Marabá. Foi preso novamente pela
imigração norte-americana quando brasileiros em Boston o reconheceram
numa reportagem do extinto programa “Linha Direta”, da TV Globo.
O Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Rio Maria também viveu a
morte de outro presidente, João Canuto de Oliveira, assassinado com 18
tiros em 1985. À época, o então prefeito de Rio Maria, o fazendeiro
Adilson Carvalho Laranjeira, e o produtor rural Vantuir Gonçalves de
Paula foram os mandantes do crime, mas foram condenados pela Justiça
paraense só em 2003, ou seja, 18 anos após o episódio.
Mesmo condenado, Laranjeira recorreu e respondeu ao processo em
liberdade até morrer, em 2007. Já Vantuir Gonçalves de Paula teve sua
prisão preventiva decretada em outubro de 2014, mas continua foragido.
Por esse caso, o Brasil também foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Segundo Reis Pereira, não são incomuns a postergação de investigações
criminais dos casos pela Polícia Civil paraense, a facilitação de fugas
de pistoleiros e a negligência em prender acusados. O pistoleiro Valdir
Pereira de Araújo, por exemplo, fugiu pela porta da frente da Delegacia
Regional da Polícia Civil do Sudeste do Pará em fevereiro de 1986. Só
12 anos depois, um novo mandado de prisão foi expedido.
Há, também, casos de participação direta da polícia no assassinato de
agricultores da região. O mais conhecido é o massacre de Eldorado do
Carajás, em 1996, quando 21 trabalhadores rurais ligados ao MST que
marchavam na estrada PA-150 rumo a Belém foram assassinados pela Polícia
Militar paraense. No episódio, 150 policiais estavam munidos de
armamento letal pesado (fuzis, por exemplo) e sem identificação. Apenas os comandantes da operação, o coronel Mário Pantoja e o major Oliveira, foram condenados pelo caso.
Terra de assassinatos
“O sul e sudeste do Pará sempre foram as regiões de maior número de
conflitos no campo no Brasil”, afirma José Batista Afonso, coordenador
jurídico da CPT. “Com relação ao estado, de cada três assassinatos que
ocorrem no meio rural do Pará, dois são aqui na região do sul e
sudeste”, diz. Segundo o levantamento da própria CPT, o Pará é o estado que lidera a violência no campo em todo o Brasil.
Uma das explicações para essa violência concentrada são os fluxos
migratórios, sobretudo a partir dos anos 1950. Com a criação da
Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA) pelo
governo federal, iniciou-se um processo intenso de concessão de terras
na Amazônia. A lógica era integrar o meio rural amazônico ao resto do
país.
Até a década de 1960, o sul e o sudeste do Pará eram ocupados por
índios, ribeirinhos, pescadores e pequenos posseiros. O governo federal e
o paraense passaram, então, a fomentar a compra de terras na região sob
a lógica do desenvolvimento.
No entorno de Marabá, por exemplo, o governo estadual concedeu
grandes extensões de terra a grupos empresariais para a exploração dos
castanhais locais. Também houve venda direta de terra para grandes
grupos econômicos. “Entre meados da década de 1950 até 1976, o governo
do estado do Pará vendeu para a iniciativa privada quase 7 milhões de
hectares de terra”, afirma o historiador Reis Pereira.
Entre as empresas que compraram terras na região, por exemplo, estão
montadoras como a Volkswagen (150 mil hectares de terra), bancos como o
Bradesco (50 mil hectares) e o extinto Bamerindus (cerca de 60 mil
hectares), além de empreiteiras como a Andrade Gutierrez.
Houve ainda a venda de terras para pessoas físicas. Dois fazendeiros
paulistas, por exemplo, João Lanari do Val e Nicolau Lunardelli,
adquiriram do governo quase 1 milhão de hectares de terra (o que
equivale a sete vezes a área da cidade de São Paulo). Atualmente, essas
terras são parte dos municípios de Conceição e Santana do Araguaia.
Repressão no Araguaia
Quando os militares tomaram o poder, o discurso do desenvolvimento e
da integração da Amazônia se somou ao da segurança nacional. O discurso
era que ocupar a área seria interessante também do ponto de vista da
defesa do Estado pelos militares, o que evitaria invasões estrangeiras e
insurgências armadas.
Foi nessa região da Amazônia que ocorreu a guerrilha do Araguaia,
um movimento de militantes do PCdoB que se instalou na confluência dos
rios Araguaia e Tocantins entre o fim da década de 1960 e o meados da
década seguinte. A guerrilha foi duramente combatida pelas Forças
Armadas até meados dos anos 1970 e também vitimou trabalhadores rurais:
muitos foram torturados e obrigados a guiar a repressão em busca dos militantes. O combate à guerrilha também deixou sequelas na luta posterior dos agricultores.
Um documento de 1976 produzido pelo Centro de Informações do Exército
(CIE) afirma que o PCdoB não tinha desistido da guerrilha na região e
que as “incitações à ocupação da terra” com apoio do “clero
progressista” seria a tática do partido para retomar a luta armada. A
atuação do major Sebastião Rodrigues de Moura, o “Curió”, também
assegurou os interesses do governo militar.
Curió, ex-oficial do CIE e ex-membro do SNI (Sistema Nacional de Informações), assumiu em 2011 que o Exército executou 41 militantes dos 67 mortos no combate à guerrilha do Araguaia.
Após a guerrilha, Curió passou a interferir em eleições de sindicatos
de trabalhadores rurais. Nos anos 1980, a área foi transformada em local
de intervenção direta do governo militar, que criou um órgão específico
para a regularização fundiária e reforma agrária na região: o Grupo Executivo de Terras do Araguaia e Tocantins (Getat). Há
vários casos documentados de torturas praticadas pelo Estado contra
trabalhadores rurais, sindicalistas, padres, freiras, agentes da CPT e
advogados que lutavam por reforma agrária.
O próprio Incra era comandado por militares. Há registros da criação
pelo órgão de sindicatos de trabalhadores rurais cujo comando era
entregue a fazendeiros. A militarização da questão agrária na ditadura
ganhou contornos próprios na região. “Muitas vezes, as reivindicações
dos trabalhadores rurais por reforma agrária eram vistas como ‘a volta
da guerrilha do Araguaia’. E esse discurso serviu à repressão”, afirma o
historiador.
Para concretizarem a ocupação, os militares apostaram na abertura de
estradas. “Com a abertura da Belém-Brasília, nas décadas de 1950 e 1960,
e posteriormente, com a abertura da Transamazônica, já no governo
militar, em meados da década de 1960, houve um incentivo muito grande
dos militares para, na lógica deles, desenvolver essa região, integrá-la
ao Centro-Sul brasileiro”, avalia Afonso, da CPT.
A partir do fim da década de 1960, surgiram estradas que ligaram os
relativamente isolados municípios do sul e sudeste do estado aos grandes
eixos rodoviários locais, caso da Transamazônica e da Belém-Brasília.
Posteriormente, por meio do Decreto-lei 1.164/1971,
editado no governo Garrastazu Médici, ficaram declaradas como
“indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais” todas as
terras devolutas situadas num raio de 100 km à esquerda e à direita das
estradas existentes ou planejadas. “Com uma simples assinatura,
aproximadamente 70% do território do Pará passou do controle do governo
do estado para o controle dos militares. Com isso, eles podiam destinar
terra a quem interessasse”, afirma Afonso.
Para fomentar a chegada dos empreendimentos agropecuários, o governo
militar deu incentivos fiscais a grupos de outras regiões do Brasil e
incentivos financeiros por meio da Superintendência de Desenvolvimento
da Amazônia (Sudam), autarquia criada em 1966, no governo Castelo
Branco, para suceder a SPVEA. Com todo o incentivo, os empresários
ocuparam, sobretudo, o sul e o sudeste paraense.
A pecuária extensiva foi a grande atividade incentivada pelos
militares na região: o norte do Mato Grosso e de Goiás e o sul do Pará
foram transformados em polos agropecuários pelo Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (Polamazônia). Posteriormente, a mineração teve grande importância.
O Projeto Grande Carajás, lançado em 1982, por exemplo, é um dos
maiores de extração de ferro do planeta; e Serra Pelada, no município de
Curionópolis (batizado em homenagem a Curió), já foi o maior garimpo a
céu aberto do mundo.
A CPT estima, ainda, que 10 milhões de hectares de floresta (duas
vezes a área do Espírito Santo) foram derrubados na Amazônia para abrir
pastos. Grande parte dessa derrubada se fez com tratores e foice. Foi
durante a abertura de pastos e a construção de estradas que se
registraram os primeiros casos de trabalho escravo contemporâneo no
Brasil, em 1970. À época, o bispo católico dom Pedro Casaldáliga denunciou as condições dos trabalhadores explorados para “derrubadas de mata e formação de pastos em fazendas infinitas”.
Migração
Uma grande quantidade de trabalhadores migrou para a área,
estimulados por uma propaganda massiva dos governos militares sob o
slogan “Terra sem homens para homens sem terra”. Também foram criados
programas de colonização e reforma agrária para trabalhadores de outras
regiões do Brasil, sobretudo do Nordeste. Um deles, o Projeto Integrado
de Colonização de Marabá, Itaituba e Altamira, previa assentar mais de
100 mil famílias às margens dos 529 km da Transamazônica, entre Marabá a
Itaituba. Setenta por cento dos agricultores selecionados eram do
Nordeste. O governo dava garantias a quem ocupasse a região: seis
salários mínimos de ajuda de custo, quatro hectares de roça pronta,
crédito bancário, compra da produção, uma casa na agrovila etc.
Com as migrações, porém, os conflitos se acirraram. “Nesses fluxos
migratórios, vem uma diversidade de atores muito grande. São
trabalhadores de várias regiões do país, mineradoras, fazendeiros,
pecuaristas, empresas agropecuárias. Esses atores têm perspectivas
diferentes”, afirma o sociólogo Igor Rollemberg, autor de um diagnóstico
das áreas em conflito no sul e sudeste do Pará produzido para a CPT.
“Esse fluxo migratório intenso somado ao desenvolvimento, aqui na
região, de atividades econômicas excludentes como a mineração e a
pecuária extensiva, que demandam uma grande quantidade de terra para o
desenvolvimento de sua atividade, ajuda a explicar os conflitos
agrários”, avalia Rollemberg.
Delegacia para área maior que o Acre
A grande incidência de conflitos agrários no sul e sudeste do Pará
fez a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) do Pará
criar as Delegacias de Conflitos Agrários (Decas) de Redenção e de
Marabá.
Essas delegacias são especializadas em resolver crimes relacionados a
conflitos agrários. A Deca de Redenção é responsável, por exemplo, por
15 municípios cujas áreas somadas ultrapassam a do estado do Acre.
A Deca de Marabá responde por 23 cidades e uma área total quase duas
vezes e meia maior que o estado do Rio de Janeiro. “Todos esses
municípios têm áreas rurais extensas onde existem muitos assentamentos
ou áreas de ocupação de fazendas”, avalia Rollemberg.
Segundo o diagnóstico publicado por ele, feito com base em dados de
junho de 2015, são 181 áreas em conflito no sul e sudeste do estado. Ou
seja, 181 áreas com ocupações de terras e/ou acampamentos.
“Muitas vezes é difícil para a gente. São várias horas de viagem até
os locais de conflitos. Quando você chega, muitas vezes não tem mais
prova material de nada e você só consegue colher depoimentos”, conta o
delegado titular da Deca de Redenção, Valdivino Miranda.
Para a CPT, há quatro causas estruturais que mantêm a recorrência e a
concentração dos episódios de violência na região. São elas: a lentidão
da reforma agrária, a inoperância dos órgãos de combate aos crimes
ambientais, a continuidade da política de investimentos em grandes
projetos que provocam impacto social na disputa por território e a
impunidade dos crimes cometidos contra trabalhadores rurais.
O órgão aponta também padrões dos conflitos fundiários. Em geral,
eles ocorrem em terras que deveriam ser destinadas à reforma agrária
(terras públicas griladas e terras particulares improdutivas), onde há a
presença de empresas de segurança privada e/ou de milícias de
pistoleiros.
Nessas áreas de conflito, em geral, as ações criminosas são pouco
investigadas e punidas, o processo de regularização fundiária é lento e,
quando o Judiciário é acionado, a solução dos casos se arrasta por
muitos anos, situação similar ao conflito no Complexo Divino Pai Eterno.
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