Via Agência Pública
Depois de dois anos parado, o processo que procura condenar Elisa
Quadros Pinto Sanzi e outros 22 ativistas presos durante os protestos de
2013 e 2014 no Rio de Janeiro deve chegar ao fim. Em abril, o Supremo
Tribunal de Justiça (STJ) começou a julgar um habeas corpus que pedia a anulação de provas colhidas por um policial militar infiltrado nas manifestações sem autorização judicial (leia mais aqui).
Assim que o STJ proferir sua decisão, o caso que ficou conhecido como
“processo dos 23”, no qual os jovens manifestantes são acusados de
“associação criminosa agravada pelo uso de arma e a participação de
adolescentes”, deve finalmente ser julgado pelo juiz Flávio Itabaiana,
do Tribunal de Justiça fluminense. Itabaiana é conhecido como
“linha-dura” e concedeu diversos pedidos de prisão temporária dos
ativistas, incluindo no final da Copa do Mundo de 2014.
Há dois anos, Elisa, 31 anos, evita falar à imprensa, traumatizada
pelos ataques à sua reputação capitaneados pelo governo do estado, à
época comandado por Sérgio Cabral. Ela foi uma das jovens que
participaram ativamente do “Ocupa Cabral”, um acampamento diante da casa
do ex-governador em meados de 2013 que o acusava de corrupção. O
impacto foi surpreendente: reeleito em 2010 com 66% dos votos, a
popularidade de Cabral despencou de 45% para 12% durante as jornadas de junho. Hoje, é um dos presos da Lava Jato.
“Querendo ou não, a gente destruiu a carreira de um político”, diz
Elisa. Nacionalmente ela é conhecida como “Sininho”, a figura que
estampou capas das principais revistas do país nas jornadas de junho. A
capa de Veja, por exemplo, trazia a manchete “Os Segredos de
Sininho”, com o subtítulo: “A militante Elisa Quadros, protetora dos
Black Blocks, é a chave para descobrir quem financia, arma e treina os
vândalos”.
Como consequência da fama repentina, Elisa foi presa duas vezes em
Bangu, perdeu o emprego, a estabilidade financeira e emocional. “Eu já
cheguei a me machucar. E eu falo abertamente porque isso não tem que ser
vergonha para ninguém não, nem para mim, nem para ninguém que passa por
isso.”
Formada em cinema, a ex-produtora recebeu a Pública
no final de 2016, quando tentava refazer a vida: confeccionava
acessórios de couro e buscava trabalhos free-lancers. Em abril, voltou a
nos receber para mais uma conversa. Para ela – que nega ser adepta da
tática Black Bloc – a Sininho “é uma construção midiática”.
Hoje, longe dos grandes protestos, ela ainda carrega as marcas da fama.
“A mídia é muito mais poderosa do que a prisão. A destruição da
identidade é eterna”, diz.
Qual a sua expectativa com relação ao julgamento do processo dos 23?
Eu acho que na primeira instância – acho não, tenho certeza – vai ter
condenação. Não tenho certeza se vai ter prisão, mas condenação vai
ter. Depois, quando chegar na segunda e terceira instância, esse
processo vai acabar sendo anistiado, porque ele está muito vergonhoso
já.
A gente está respondendo por formação de quadrilha armada, mas sem
arma, porque a arma que acharam é da menina secundarista, que era do pai
dela, que é segurança da Uerj. Ele tem autorização, tudo certinho. Por
isso ele tem uma arma em casa.
Agora, se me prenderem, eu tenho muito medo de ser bombardeada na
mídia de novo. Mas nada mais do que eu já não vivi. A questão é o que
eles fizeram comigo, não tem como voltar. Foi bem ruim.
Como é que foi que você virou a Sininho? Teve um momento?
Teve. Foi o dia 15 de outubro de 2013.
Esse foi o dia em que 201 pessoas foram detidas em um
protesto na greve dos professores no Rio. Foi quando apareceu aquela
primeira foto na Folha de S.Paulo. Você estava em um ônibus
abraçando o seu então namorado, Luiz Carlos Rendeiro Júnior, o “Game
Over”, antes de ser encaminhada para a delegacia.
Foi tudo muito traumatizante. Mas o 15 de outubro, para mim, tem um
significado. Você nunca vai achar que vai ser presa, né? Você é classe
média, branca, isso nunca vai passar pela sua cabeça. Então foi uma
série de rupturas na minha vida. Ali tudo se iniciou. 15 de outubro foi
visível, foi chocante, foi agressivo. A polícia separou homens e
mulheres na Câmara [dos Deputados]. Duas pessoas que eu conhecia levaram
tiro. E ali eles me destacaram. Me tiraram da escada, me destacaram de
todo mundo e me colocaram ali com todos os coronéis, os chefes do Bope,
do Core, da Polícia Militar. “Ah, você que é a Sininho? Você que é a
grande líder?”
Eu tive escolta particular, eu tive que entrar num carro diferente.
Foram 40 mulheres detidas, e eu fui a única presa mandada para Bangu.
Ali foi quando eu virei capa [de jornal] pela primeira vez. A foto é chocante, histórica. A mise-en-scène com aquilo ali… Foi ali que criaram essa personagem, a liderança Sininho. E aí foi quando fui para Bangu pela primeira vez.
Eles me colocaram no carro do Core [Coordenadoria de Recursos
Especiais da Polícia Civil fluminense] e os policiais foram até gentis.
Quando a porta daquele carro fechou, que minha amiga saiu correndo e me
entregou o lanchinho da minha mãe, eu, apavorada, falei: “Agora a minha
vida não me pertence mais”.
Como foi a sua prisão?
Eu não chorei dentro do carro, eu não chorei quando cheguei em Bangu.
Eles não me viram chorando em nenhum momento. E aí eu entrei na cidade
prisional, que é gigantesca, e acordei já na frente de Bangu 8. Minha
vontade era abraçar essas pessoas e dizer “me deixa nesse carro, eu não
quero entrar”. Eu não conseguia nem andar, ficava paralisada.
Eu entro no presídio e eles fecham aquele portão. Foi uma sensação de
morte. Eu fui entrando na recepção, onde você tem que tirar toda roupa,
que é outra humilhação, e aí você tem que ficar fazendo posições, você
tem que abrir a boceta para mostrar se tem alguma coisa dentro. Eu me
encostei porque estava muito cansada. Tinha mais presas que tinham
entrado, e [uma delas] se encostou também. E aí veio a carcereira e deu
um soco na cara da menina, na minha frente. Na verdade, ela queria bater
em mim, mas ela não podia. E falou: “Você pensa que você está onde, na
tua casa? Aqui tem regra, aqui quem manda é a gente. Abaixa a cabeça,
mão para trás, senão vai levar”. Eu sabia que era para mim.
Imediatamente botei a mão [para trás].
Você ficou quanto tempo lá?
Cinco dias. Eu fui sequestrada durante 24 horas na delegacia. Para
mim, é um sequestro. Se não existe crime, se existe só perseguição, é um
sequestro. Eu saí da prisão em choque. Mas não sabia que eu era
midiaticamente a Sininho. Eu descobri isso saindo de Bangu.
De onde vem o nome Sininho?
No Ocupa Cabral, até por uma questão de proteção, a gente fez uma
roda, e nos davam um apelido. Então a Disney reinou, tinha Pocahontas, e
eu era “Sininho” porque eu era bravinha, pequeninha, e sempre com as
minhas botinhas, sapatinho de bailarina, sabe? Tipo de fadinha mesmo.
Ali foi Sininho. Que eu gostava até então. Agora eu não gosto mais não.
Por quê?
A “Sininho” é uma construção midiática. Eu estou começando a entender
um pouco melhor e a parar para pensar sobre tudo o que aconteceu. É
assim que eles funcionam: a mídia, o Estado, eles precisam de uma
liderança. Mas não teve liderança. Tinha pessoas que têm facilidade de
assumir mais coisas, mas isso não significa uma liderança. Eu sou
produtora, então sou muito rápida. Eu não tenho paciência, sou muito
brava. Eu avalio hoje que, das pessoas que estavam mais ativas, eu fui
escolhida para ser o bode expiatório.
E aí você faz uma avaliação de critérios morais. Nesse país machista
em que a gente vive, destruir mulher é fácil. Branca, hétero, classe
média. Usaram muito o argumento de “rebelde sem causa”. E o moralismo do
machismo. Moralismo religioso: cara de vagabunda, destruidora de lares,
“ela usa sedução para conseguir as coisas”… Virei “líder de Black
Blocs”. Gente, pelo amor de deus, eles não têm líder, eles usam uma
tática, começa por aí. Eu nunca usei a tática, sou de outras táticas,
por isso que eu nunca tampei o rosto. Gente, é uma tática política de
ataque ao capital!
Mas ali no caso, o Cabral foi destruído. Querendo ou não, a gente
destruiu a carreira de um político. No “Ocupa Câmara”, por exemplo,
estávamos mexendo com uma das maiores máfias do Brasil, que é a máfia do
transporte e a máfia do combustível. Mexendo com duas máfias
poderosíssimas no Brasil.
Eu entro no presídio e eles fecham aquele portão. Foi uma sensação de morte
Você procurou se proteger?
Você vai pirando, vai se protegendo. Vai pirando mais do que se
protegendo, porque você não está acostumada a isso. O máximo que você
pode fazer é tomar todos os cuidados. Mas eu percebia que os telefones,
todos eles, tinham uma interferência. Já teve, por exemplo, várias vezes
que o computador mexia sozinho. Eu estava fazendo umas coisas e ele ia
abrindo pastas, e aí eu descobri que eram pessoas invadindo meu
computador. E aí você fica apavorada. Já teve, por exemplo, [eu falando]
no Facebook, meio apavorada: “Eu acho que tem alguém no computador”.
Daqui a pouco alguém fala com você no Facebook: “Ah, estou adorando as
suas fotos, deveria ser modelo. Sua mãe é tão fofa. Quem é esse
cachorrinho?”.
Como você reagiu a isso tudo?
Quanto mais você vai peitando, mais você vai sendo destruída. Foi o
que aconteceu comigo. Se eu tivesse abaixado a cabeça, não acredito que a
criminalização ia diminuir. Você cria um símbolo. Essa pessoa não
precisa fazer mais nada, vai continuar sendo citada. Eu fui citada no
estupro coletivo [ocorrido no morro da Barão em maio de 2016]. Eu estou
arrolada no processo. Também foi citado [na coluna do] Ancelmo Góis que
eu estava influenciando a molecada a ocupar as escolas, a ocupar a
Secretaria de Estado da Educação [Seduc]. Eu não sei nem onde fica a
Seduc! Agora o processo do Santiago está andando, e onde fala do caso do
Santiago eu sou citada.
Você está falando do cinegrafista Santiago Andrade, da TV
Bandeirantes, que foi morto por um rojão atirado em 6 de fevereiro de
2014. Os dois acusados, Fábio Raposo e Caio Silva de Souza, ficaram
presos por cerca de um ano…
Sim. Eu não tenho absolutamente nada a ver com isso. Tanto que nem no
processo estou. Eu conhecia o Fábio, o Fox, da ocupação, mas era mais
um menino que estava lá. Nunca tinha visto o Caio na minha vida. Eu
estava presa dentro da Central do Brasil, presa pelos policiais. A
polícia estava espancando as pessoas: criança, idoso, mulher, homem… De
manhã, um amigo que é jornalista, que tinha sido amigo dele [de
Santiago], estava com olho inchado, vermelho, me abraçou assim: “Cara,
um amigo meu vai morrer”. Me abraçava e chorava.
Ali eu já tinha sido massacrada, já tinha sido várias capas, mas não da Veja. Uma semana depois eu fui capa da Veja.
Como foi?
O maior erro que cometi foi ter ido na delegacia quando o Fábio se
apresentou. Eu acordei de manhã com umas amigas minhas, apavoradas,
falando que o Fábio tinha se entregado. E o que a gente fez? Começou a
ligar para [o pessoal dos] direitos humanos. O Marcelo Freixo é
presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj. É obrigação dele
saber o que está acontecendo. E eu tenho telefone da Comissão dos
Direitos Humanos, não tenho o telefone do Freixo, até porque eu vi ele
duas vezes na minha vida.
E aí eu liguei, e ele que atendeu. E aí começou tudo. Eles tiveram um
prato cheio para falar que eu tinha envolvimento com o caso e inventar
essa história de ligação com o Marcelo Freixo. É tão boçal esse negócio
de ligação com o Marcelo Freixo!
Eu acompanhava as pessoas que tinham sido presas e eu vi muita
tortura lá dentro. Minha preocupação era ele [Fábio] ser torturado lá
dentro. Na hora que eu cheguei lá, estava um zunzunzum e eu não entendia
absolutamente nada. E aí que teve a confusão. A mídia começou a ficar
muito agressiva com a gente, e teve aquela confusão de eu ter chamado
eles de “carniceiros”.
A morte do Santiago significa uma dor que eu não consigo imaginar
para a família dele. Mas tudo o que eles precisavam era eu ir para a
delegacia. Porque aí eles pegam a criação midiática da liderança e
juntam com o maior caso da destruição dos movimentos sociais que estava
acontecendo.
A mídia é muito mais poderosa do que a prisão
Quando foi o momento em que você percebeu que isso a estava afetando pessoalmente?
A capa da Veja foi bem ruim. Quando começou a surgir o boato que eu ia sair na próxima capa da Veja,
eu já estava me preparando. Só que uma coisa é você se preparar, outra é
você sentir. Eles publicam a capa na internet antes. Sentaram três
amigas na minha frente. Eu comecei a achar estranho, elas estavam
nervosas e não queriam que eu mexesse no meu celular.
Nem consegui dormir. Fui na banca e fui direto na capa. Tinha um
menino olhando, o menino deu uns pulinhos para trás. E eu sentei com
óculos, com o jornal na cara. Apavorada. Todo mundo me olhava, sem
exceção. Ali chegou um cara do Washington Post: “Olha, queria te pedir desculpa, mas eu sou do Washington Post”…
É muita tensão. Todo mundo te reconhece. Em vez de você ficar normal,
você vai chamando mais atenção ainda porque está tão nervosa. E isso é o
estado da paranoia, né? Isso é uma tortura. É torturante, é
aterrorizador.
Você foi buscar ajuda profissional?
Sim. O grupo Tortura Nunca Mais me deu todo o suporte psicológico, de
carinho, de troca de experiência. E aí você descobre que não está
sozinha. Não são só as pessoas de 2013, de 2012, que estão sendo
perseguidas, mas pessoas de outros momentos, da ditadura, dos anos 90,
do Diretas-Já. E isso me ajudou muito. Conhecer os meus heróis, para
mim, foi incrível. Eu tive acompanhamento psiquiátrico, psicológico,
desde a primeira vez que eu fui presa, 15 de outubro de 2013. Eu tenho
psicólogos até hoje que me acompanham. Eu tenho esse estresse
pós-traumático, que foi diagnosticado.
Qual foi o diagnóstico?
Você passa por um processo intenso de perseguição, e você vai tendo
uns tiques. Que é a paranoia, que é a depressão. Você tem muita raiva,
tem muita raiva das pessoas próximas de você. Então você agride, você
grita. Aí tem a raiva de você mesma. Eu já cheguei a me machucar. E eu
falo abertamente porque isso não tem que ser vergonha para ninguém, não.
Nem para mim nem para ninguém que passa por isso. A própria
clandestinidade foi, na minha visão, o momento mais intenso de paranoia.
Conte sobre a sua prisão no final da Copa do Mundo.
Eles me pegaram em Porto Alegre. Eu estava indo pra Porto Alegre para
visitar o meu avô – que estava doente e morreu dias depois –, eu não
consegui encontrar porque eles fizeram o favor de fazer a mise-en-scène
deles. Não foi tão traumático em relação à prisão em si, mas bem
traumático em relação à mídia. Teve muita mídia. Eu fui pega [em Porto
Alegre] às cinco e meia, seis horas da manhã, e só cheguei na DRCI às 9
ou 10 horas aqui no Rio.
Nesse país machista em que a gente vive, destruir mulher é fácil
Sobre o período em que você ficou foragida, o que aconteceu exatamente?
Eu não digo foragida, mas clandestina. Eu fiquei clandestina no dia
13 de agosto de 2014. Nós já éramos processados pelo [processo dos] 23, e
uma das restrições é que você não pode sair da comarca da cidade do Rio
de Janeiro. Não posso ir para Niterói. E não pode participar de
reuniões públicas. Então, na verdade, não posso beber aqui embaixo
porque é uma reunião pública.
Você, o Igor Mendes da Silva e a Karlayne Moraes da Silva
Pinheiro, a Moá, foram a um encontro público, sendo que havia uma medida
cautelar para não participarem de atos públicos. Por que você decidiu
se esconder?
Eu não considero nem “esconder” nem “foragida”. Porque a gente não
cometeu crime nenhum. O Estado me colocou em clandestinidade. Eu não
fugi, eu me defendi. Então eu e Moá ficamos sete meses clandestinas, e o
Igor infelizmente ficou preso.
Como assim, clandestinas? Usando outra identidade?
Não, não, não tem esse grau de organização. Para a Moá deve ter sido
muito difícil, mas ela não era conhecida midiaticamente. Para mim foi
tanto que, na época, eu falava “eu quero ir para Bangu, eu prefiro ir me
apresentar”, porque pelo menos na prisão eu tenho contato com as
pessoas, eu posso falar com meus advogados. Na clandestinidade é tudo
muito difícil. Ainda mais tendo sua cara, no disque-denúncia, com
recompensa a dinheiro. Estava lá, profissão: “ativista política”.
Como era o aviso do disque-denúncia? Qual era a recompensa?
R$ 2 mil. Passou no Fantástico o disque-denúncia. Apareceu no Fantástico a foto do meu RG e ficou na internet muito tempo até eu sair [da clandestinidade].
Você não podia sair na rua?
Não. Eu vou te falar, é barra pesada, eu não desejo isso a ninguém.
Eu não podia nem tomar sol porque, se ficasse na janela, uma pessoa
podia me reconhecer. Então eu ficava o tempo inteiro dentro de lugares
fechados. Uma loucura.
Depois da clandestinidade, eu surtei, eu caí em um tipo de depressão
mesmo, crise de pânico. Me machucando, machucando as pessoas que estão
perto de mim, tendo que tomar muito remédio pesado. Não era possível
levantar da cama. Ali eu despenquei.
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