Eron Rezende Jornal A Tarde da Bahia
Escritora, performer e pesquisadora, Grada Kilombo discute
em sua obra racismo e memória - Foto: Adilton Venegeroles
Grada Kilomba, 48, nasceu em Portugal, cresceu em São Tomé e
Príncipe (uma das ex-colônias portuguesas na África) e viaja o mundo
apresentando seus trabalhos – videoinstalações, performances e produções
literárias – que versam fundamentalmente sobre racismo e memória. No Brasil,
onde integrou a 32ª edição da Bienal de
São Paulo, encerrada em dezembro último, apresentou a série de vídeos do seu
“Projeto Desejo” e diz ter encontrado “um país fraturado”. “Há uma história de
privilégios, escravatura e colonialismo expressa de maneira muito forte na
realidade cotidiana”, explica. “E é espantoso ver a naturalidade com que os
brasileiros conseguem lidar com isso”. Escritora, performer e professora da
Universidade Humboldt – a mais antiga e uma das mais tradicionais de Berlim,
onde vive atualmente –, Kilomba é autora dos livros Plantations memories –
episodes of everyday racism (2008), onde conta suas histórias pessoais como
mulher e negra, e Performing knowledge (2016), no qual trata da necessidade de
“descolonizar os pensamentos”. “Muitas vezes, nos dizem que nós somos
discriminados porque somos diferentes. Isso é um mito. Não sou discriminada por
ser diferente, mas me torno diferente justamente pela discriminação que sofro”.
Nesta entrevista à Muito, concedida durante a residência artística que
realiza no Instituto Cultural
Brasil-Alemanha (Icba), ela fala sobre racismo e outros “ismos” que marcam o
mundo contemporâneo: “O branco não é uma cor. O branco é uma definição política
que representa os privilégios históricos, políticos e sociais de um determinado
grupo. Um grupo que tem acesso à estruturas e instituições dominantes da
sociedade. Branquitude representa a realidade e a história de um determinado
grupo”.
Na Bienal de São Paulo, a senhora apresentou o Desire
Project [Projeto Desejo], uma série de vídeos que indicam a presença de um
sujeito sem voz, que é silenciado pela história. Vivemos num momento em que
esse silêncio já foi quebrado?
Esse silêncio tem sido quebrado pontualmente. Mas não existe
realmente uma linha contínua. Ele é quebrado por pensadores, por intelectuais e
por artistas, que são exceções. A palavra que batiza o projeto – desejo – vem de uma vontade de expressar o que ainda
não é expressado: o que nós queremos e o que é, de fato, importante para nós.
Os sujeitos historicamente silenciados, como os negros, as mulheres e os gays,
estão muito treinados a dizer o que não querem. Somos contra o racimo, o
sexismo e a homofobia. Mas é muito importante também criar novas agendas, criar novos discursos.
Como não nos perguntam o que nós desejamos, isso precisa ser colocado por nós.
Qual é o caminho que eu quero seguir? Qual é o vocabulário que eu quero usar?
Como eu quero me tornar visível? Como eu quero contar a minha história? Parte
do processo de descolonização é se fazer essas questões. E isso integra um
processo de humanização, porque o racismo, por exemplo, não nos permite ser
humanos. O racismo nos coloca fora da condição humana, e isso é muito violento.
A senhora mora e trabalha, hoje, em Berlim, na Alemanha.
Considera que a tomada de consciência de sua identidade negra é maior numa
cidade predominantemente branca?
Berlim é uma cidade que não é bonita esteticamente,
comparada a Paris ou Lisboa, mas é uma cidade que te leva à reflexão e ao
pensamento. Isso me permitiu focar no que sou e em como quero construir o meu
trabalho. Talvez em outra cidade, em outro contexto, isso não acontecesse ou
fosse algo retardado. Escrevo e falo como uma mulher e artista negra. Mas, por
outro lado, Berlim é uma cidade cosmopolita e eu estou em contato com tantas
pessoas diferentes, de movimentos politizados distintos, que isso cria um outro
discurso em mim. Eu acabo não tão focada em ser mulher e negra, embora isso
faça parte da minha identidade.
Países sem passado escravocrata, como Alemanha, são
identificados como territórios mais tolerantes diante da questão negra. Percebe
dessa forma?
Não. A questão racial é um problema, mesmo na Alemanha, que
não teve em seu território o regime escravocrata. Mas a Alemanha colonizou
muitos países e tem também um passado escravocrata muito brutal. Mas essa
história foi silenciada por muito tempo. O primeiro genocídio do século 20
aconteceu na Namíbia e foi realizado pela Alemanha [entre 1904 e 1908]. Mais de
100 anos depois do início da tentativa de extermínio das tribos Herero e Nama é
que o governo reconheceu, oficialmente, que o país havia cometido um genocídio e
fez as compensações devidas. Na Namíbia, por exemplo, os descendentes dos
sobreviventes tiveram que decidir o que fazer com os crânios de parentes que
haviam sido enviados a Berlim para experiências científicas. A questão é que a
história colonial alemã é muito mal documentada. Mas todo o genocídio, a
exploração e a violência que está por trás de um processo colonial está,
também, na Alemanha. Só muito recentemente é o que país parece ter se dedicado
a enfrentar essa questão. Primeiro, na forma de dor. Depois, na forma de
vergonha. E isso tem permitido uma reflexão.
"
A história colonial é uma ferida profunda, muito infectada,
que de vez em quando sangra. E só quando sangra é que fazemos um curativo
Grada Kilomba
No Brasil, há o mito da democracia racial e uma política de
eufemismos. Em sua opinião, como podemos enfrentar o racismo nessa situação?
Penso que a história colonial é uma ferida muito profunda,
muito infectada, que de vez em quando sangra. E só quando ela sangra é que nós
vamos lá e fazemos um curativo. Não há um tratamento contínuo dessa ferida. E a
história colonial já tem 500 anos. O racismo, no Brasil, é muito presente. O
Brasil é extremamente colonial. Existe toda uma estrutura colonial arraigada neste
país. A arquitetura é um exemplo disso. Há uma porta da frente e uma porta dos
fundos. Isso eu só vi aqui no Brasil. E as portas do fundo e as da frente
possuem sujeitos diferentes. E essa arquitetura não foi construída no século
19, mas nos anos 1980, 1990. E aqui há um senhor que abre a porta, um senhor
que conduz o carro, uma senhora que limpa... Estes são serviços completamente
coloniais. Como é possível ter tantos corpos negros prestando serviços dentro
de uma estrutura assim? O branco de hoje não é mais o responsável pela
escravidão, mas ele tem a responsabilidade de equilibrar a sociedade em que
vive. Ninguém escapa do passado.
A senhora já disse certa vez que uma das grandes fantasias
das pessoas brancas é poder escapar da sua branquitude...
É que o branco não é uma cor. O branco é uma definição
política que representa os privilégios históricos, políticos e sociais de um
determinado grupo. Um grupo que tem acesso à estruturas e instituições
dominantes da sociedade. A branquitude representa a realidade e a história de
um determinado grupo. Quando falamos sobre o que significa ser branco, falamos
de política e não de biologia. É curioso quando as pessoas falam em “racismo reverso”, porque as pessoas
que excluem, que dominam e que oprimem não podem ser, ao mesmo tempo, vítimas
dessa opressão. Mas elas, certamente, desenvolvem um sentimento de culpa em
relação a isso. O que muitas vezes acontece é que, como o sentimento de culpa é
tão avassalador, o agressor passa à vítima e transforma a vítima em seu
agressor. Isso permite que o agressor se liberte da ansiedade que o seu próprio
racismo provoca. Uma pessoa negra jamais teria esta escolha. Sob esse aspecto,
penso que é impossível escapar da
branquitude e daquilo que ela realmente representa.
Como transformar essa culpa que você menciona em algo
produtivo?
Trabalhar o próprio racismo é um processo psicológico e não
tem nada a ver com moralidade. As pessoas brancas muitas vezes perguntam: ‘Sou
racista?’. Essa é uma questão moral, que não é realmente produtiva, porque a
resposta será sempre: ‘Sim’. Temos que entender que somos educados a pensar em
estruturas coloniais e racistas. A pergunta deveria ser: “Como eu posso
desconstruir meu próprio racismo?”. Essa seria uma questão produtiva, que já se
opõe à negação e inicia um processo psicológico. A questão, hoje, não é se
livrar da branquitude, mas conseguir se posicionar novamente dentro dessa
branquitude. Tem a ver com a forma como uma pessoa que tem acesso ao poder
utiliza esse poder para criar uma nova agenda e recontar a história. Nós não
podemos fugir da história que nós temos, mas podemos nos posicionar com um novo
olhar.
Quando Barack Obama assumiu a presidência dos Estados
Unidos, a senhora escreveu sobre a importância de termos pessoas negras no poder, criando imagens
positivas para outras pessoas negras. Como vê a ascensão de Donald Trump e da
extrema direita europeia?
Às vezes tenho a impressão de que vivemos numa
atemporalidade, em que o passado está
sempre no presente. Nós vivemos no presente, mas o passado está sempre sendo
construído. E a mudança parece algo muito pontual. O caso de Obama, sucedido
por Trump, é um exemplo disso. A estrutura na qual a sociedade se forma é
conservadora. O mundo vive um dilema com as três dimensões do tempo: o passado,
o presente e o futuro, sem parecer, de fato, alcançar esse futuro. Há um mês,
fiz um trabalho chamado “Ilusões”, em que reencenei o mito de Narciso
(castigado a só conseguir amar a si próprio) e de Eco (castigada a viver
repetindo o que os outros diziam), fazendo um paralelo desses mitos com nossa
sociedade contemporânea – que é narcisista, branca e patriarcal. Há uma
repetição infinita dessa imagem colonial, branca, patriarcal, que parece
apaixonada por si mesma e obstinada a idealizar a si mesma, e que não vê mais
nada diante de si, a não ser sua própria representação. É uma representação
onde as outras pessoas simplesmente não existem. Donald Trump foi apoiado por
boa parte do eleitorado feminino. Um eleitorado que ele explicitamente insulta.
Nós somos leais ao passado, à figuras paternas e discriminatórias. Nós apoiamos
figuras que excluem. Uma parceria entre Eco e Narciso que não é quebrada.
Em muitos trabalhos, a senhora alerta para o risco de ver as
coisas de um único ponto de vista, mais precisamente sob o estereótipo branco
dominante. A globalização e a tecnologia lançaram a promessa de ajudar a
combater essa visão única. Acredita que isso tem acontecido?
Em parte. A tecnologia nos deu opções e acesso a histórias
diversas. Se alguém quiser, hoje mesmo, poderá ler os jornais da África do Sul.
Mas, ao mesmo tempo, a tecnologia também lhe permite assinar apenas as notícias
do seu bairro, da sua rua, por exemplo, e isso é tudo o que chegará. A
tecnologia, portanto, não resolveu de fato o problema. O filtro-bolha e esse
isolamento de grupos que pensam diferente, muito presente nas redes sociais,
são consequências de nossa aprovação para notícias e opiniões que reforcem
apenas as nossas crenças preexistentes. Consumir informações que confirmem
nossas ideias de mundo é simples e até mesmo
prazeroso. Mas consumir informações que nos desafiem a pensar novas
formas ou a enfrentar as nossas
arrogâncias é frustrante e muito difícil.
No livro Plantation Memories – Episodes of everyday racism a
senhora não aborda o racismo do ponto de vista político ou histórico, mas do
ponto de vista pessoal, quase psicológico. Por que a opção?
Quando eu decidi escrever, eu quis fazer um livro que eu
nunca tinha lido. Nunca se falam das pessoas e o que o racismo faz com elas.
Quando falamos sobre racismo, geralmente adotamos uma perspectiva que é
macropolítica. Realidades, pensamentos, sentimentos e experiências das pessoas
negras são ignorados. Isso é exatamente o que eu queria ter no centro deste
livro, o nosso mundo subjetivo. Quando escrevi Plantations Memories, eu estava
interessada em olhar para as minhas feridas e para as feridas de muita gente.
Dar ênfase a uma dimensão traumática do racismo, a uma violência diária que
reencena um trauma colonial e que nos emudece. Para mim, era muito importante
coletar histórias do dia a dia, que ninguém parece levar a sério, mas que são
violentas e que levam ao silêncio.
Um futuro sem racismo é possível?
Não agora. Não sem racismo e sem outros “ismos”. Porque nós
somos educados diariamente a pensar de forma dominante. O fato de Obama ser
presidente não significou que o racismo tenha terminado, e o fato de Angela
Merkel ser chanceler não significa que chegamos ao fim do sexismo. Mas antes de
pensar num mundo sem “ismos”, a gente precisa pensar como é possível
desconstruí-los. Como, por exemplo, é possível quebrar a cadeia de racismo que
nos acompanha diariamente. É sempre uma questão ligada à realidade e ao agora.
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