terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

“Clara Estrela”, filme sobre Clara Nunes, uma intérprete do Brasil

Por Roberto Bitencourt da Silva
Nesses primeiros dias de fevereiro, o Curta, canal televisivo por assinatura, agraciou o público com a exibição de um belíssimo documentário: “Clara Estrela”. Trata-se de filme que retrata a vida e a obra de Clara Nunes, apoiando-se em imagens de época e entrevistas concedidas pela grande cantora, sobretudo na década de 1970. Uma justíssima e oportuna homenagem a um ícone da música brasileira, que faleceu em 1983, muito jovem, aos 40 anos de idade.
“Clara Estrela” é uma produção cinematográfica dirigida por Susanna Lira e Rodrigo Alzuguir e que conta com a narração da atriz Dira Paes. O longa foi lançado no Festival do Rio no ano passado e, segundo comunicado da webpágina do filme no Facebook, a produção encontra-se envolvida com negociações para a distribuição nos cinemas.


Muito longe de ser dotado de competência como crítico musical e de cinema, me atrevo a escrever essas rápidas linhas na condição de fã da cantora e, especialmente, por seu significado maior projetado na cena cultural brasileira: uma intérprete do Povo Brasileiro. Seguramente, essa constitui uma das variáveis que alçaram a extraordinária Clara Nunes à posição de uma das mais representativas personagens da cena artística nacional. Ainda distante das luzes da ribalta, Clara Nunes teve o seu talento reconhecido e valorizado por gigantes da cultura brasileira, como Ângela Maria, Ataulfo Alves e Vinícius de Moraes, como bem destaca o filme “Clara Estrela”.

Sempre gostei da música de Clara Nunes, um legado dos meus pais, que ouviam e ainda ouvem com prazer o canto da Guerreira. Criança ainda, morador da zona norte do Rio, lembro-me bem do trauma que foi a morte de Clara Nunes. Recordo-me de colegas de escola que choravam por conta da impactante notícia. A nossa querida professora Tânia teve que intervir e explicar um pouco do ciclo da vida, em geral, e sobre a importância de Clara.
Isso posto, o documentário revela a trajetória de uma cantora nascida em Paraopeba, interior da querida Minas Gerais, que foi operária tecelã pouco após a infância e que, jovenzinha, se tornou apresentadora de programa musical em TV de Belo Horizonte. Após recomendações de nomes importantes da cena musical, veio ao Rio firmar contrato com gravadora, mas ficou presa às determinações e aos critérios mercantis, cantando boleros.
Um importante momento de inflexão em sua carreira se deu com samba composto por Ataulfo Alves e Carlos Imperial, chamado “Você passa, eu acho graça”. O grande Ataulfo dizia que ela precisava cantar “coisas do Brasil, cantar samba” e deixar de lado “músicas estrangeiras”. A partir de então, sua carreira e identidade artística decolaram. Converte-se em pesquisadora interessada pelas tradições culturais brasileiras: danças, estética, ritmos, valores e músicas.   
A grande cantora colocou em primeiro plano, particularmente, elementos do quadro de referências da contribuição cultural afrodescendente: religião, sons, estética, temáticas. Quase sempre se apresentando de branco, portando os seus colares, pode-se dizer que a filha de Iansã com Ogum, Clara Nunes, se tornou um ícone musical, uma espécie de Carmem Miranda, mas não made in exportação. Autenticamente brasileira e voltada para o público pátrio.
A imagem da Guerreira, da força feminina independente, que se esforçava, trabalhava, estudava, corria atrás de seus sonhos, defendia seus credos e suas esperanças, afirmava-se contra a subjugação da mulher ao machismo e demais preconceitos. Foi a primeira cantora brasileira a vender mais de cem mil cópias de discos. Foi um grande sucesso musical, com uma estética inovadora para a indústria cultural da época e que tendia, ontem como hoje, a se chocar com padrões culturais eurocolonizados predominantes.
Cantava as dores, os problemas e a força da nossa gente. Também a espoliação sofrida pelo Povo Brasileiro. Suas músicas mostravam a diversidade étnica brasileira, com acento especial dado à colaboração da riqueza cultural proveniente das nossas raízes negras, sublinhando o Brasil miscigenado, projetando uma identidade nacional distante do euroamericanocentrismo, sempre insinuante, na época como em nossos dias. Por isso, Clara cantava um Brasil dotado de cultura fecunda e bastante diversificada e criativa.   

A música de Clara Nunes projetava um País socialmente inclusivo, culturalmente afirmado, cioso de suas riquezas e especificidades, sem viralatismos de elites inseguras, bobalhonas e subservientes a padrões estéticos, culturais, (e, porque não?) políticos, colonizados e colonizantes. Uma rainha do samba, mas que cantava com primor outros estilos igualmente ricos da nossa bela e heterogênea paisagem geográfica e cultural.
A bela Clara Nunes foi uma verdadeira intérprete do Brasil. No âmbito da criação musical, expressou, personificou, sintetizou e organizou temas, valores, crenças, ritos, comportamentos, sons e ritmos populares, caros ao cotidiano da nossa sofrida e superexplorada, mas engenhosa e inventiva, gente do Povo Brasileiro.
Com raro talento e ousadia, Clara foi porta-voz das nossas coisas e da nossa gente. Assim como o maravilhoso Cinema Novo de Nelson Pereira dos Santos, de Glauber Rocha, Cacá Diegues, Rui Guerra e tantos outros, a grande Clara Nunes procurava (re)descobrir e reverberar o Brasil profundo, real, dar voz e mostrar o Povo, em suas batalhas e experiências cotidianas.
Por essas e tantas outras razões, para quem conhece, é sempre prazeroso ouvir a nossa Clara Nunes do Brasil. Para os jovens que não conhecem, procurem ouvir e conhecer. Irão conhecer não apenas uma grande cantora, mas também uma visão de Brasil. Fico com a expectativa de que o bonito e importante documentário “Clara Estrela” circule em nossas salas de cinema o quanto antes, assim como esteja, sem demora, acessível ao público na televisão aberta.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político

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