Por Luis Felipe Miguel, via Jornal GGN
"PT caminha para se esfarelar com uma velocidade inimaginável ..."
É possível dizer que é injusta a maneira pela qual o Partido
dos Trabalhadores se tornou o emblema de todos os vícios da política
brasileira, enquanto seus concorrentes da direita são preservados
sistematicamente por uma cobertura de mídia manipulada. É verdade. Caixa dois,
loteamento do Estado, relações de compadrio com grandes grupos econômicos,
corrupção: o PT não inventou nada disso; pelo contrário, tornou-se participante
tardio de uma festa que começara muito antes (e, aliás, para a qual nem fora
convidado). Nem por isso, os efeitos do desgaste do PT no eleitorado deixam de
ser sentidos. Para a classe média, que se sentiu ameaçada pelo pequeno avanço
dos mais pobres nos três mandatos presidenciais petistas, o discurso da
indignação moral permite extravasar sua insatisfação, de maneira mais legítima
do que se ficasse apenas no registro do simples egoísmo. E a maioria
politicamente desmobilizada, com menor acesso a outros canais de informação,
tem poucos recursos para resistir ao bombardeio da mídia.
Ao mesmo tempo, os grupos mais politizados à esquerda se sentem cada vez
menos contemplados pelo partido que é responsável por um governo que implanta
políticas altamente prejudiciais aos interesses dos trabalhadores e que, na busca da permanência no
poder, não imagina outro caminho além de uma submissão cada vez mais profunda
ao capital. Em nove meses de segundo mandato, a presidente Dilma Rousseff não foi
capaz sequer de fazer um aceno simbólico aos movimentos populares, certamente
por imaginar que tal gesto assustaria aqueles que ela tenta desesperadamente
agradar. Na visão política de Dilma e seu círculo, os movimentos populares não
existem. Todas as equações que fazem para sair da crise incluem os mesmo
elementos: os grandes grupos econômicos, as elites políticas tradicionais, as
oligarquias partidárias. Por mais que a conta nunca feche, não se cogita
agregar um novo fator.
No início deste segundo mandato ainda era possível imaginar
que, apesar de todo desgaste, o PT possuía lastro nos movimentos sociais para
manter sua relevância como força política. Hoje, está claro que não. Por mais
que o golpismo dos defensores do impeachment seja evidente, por mais que ver
Fernando Henrique Cardoso e Aécio Neves entronizados no papel de guardiães da
moralidade pública cause repulsa, quem quer defender um governo cujo único programa é o
aumento do desemprego e a redução do investimento social?
Espremido entre a campanha ascendente da direita, uma mídia
cada vez mais abertamente hostil e o seu governo, que age diariamente contra
sua base social, o PT caminha para se esfarelar com uma velocidade inimaginável um ano
atrás. Movimentos sociais
acomodados com a interlocução com o PT estão percebendo que o partido perdeu a
capacidade de expressar suas demandas. Mas também muitos deputados, prefeitos e
vereadores petistas buscam novas legendas, por vezes até na direita, em geral
por simples oportunismo – o que revela, por si só, como o PT se tornou parecido
com os partidos tradicionais.
Evidentemente, tudo isso não é efeito apenas do descalabro do
segundo governo Dilma. O PT nasceu com um projeto – inacabado, em aberto,
contraditório. Apontava para um horizonte de transformação profunda da
sociedade, incluindo algum tipo indefinido de socialismo, alguma forma nova de
fazer política e também a revalorização da experiência das classes
trabalhadoras. A busca de relações radicalmente democráticas, de uma política
efetivamente popular, fazia parte da “alma do Sion”, como André Singer definiu
o espírito original do partido, fazendo referência à sua fundação no Colégio
Sion, em São Paulo, em 1980.
Para pessoas treinadas nas tradições organizativas da
esquerda, o PT original possuía uma perigosa indefinição programática, além de
ser vítima de um basismo e de um purismo paralisantes. De fato, o partido
surgiu num momento em que essas tradições estavam em xeque. Os equívocos do PT
foram fruto de sua vontade de não repetir o trajeto dos partidos leninistas ou
da social-democracia, que, cada um a seu modo, tenderam a se fossilizar em
estruturas hierárquicas e burocráticas. Tratou-se de uma experiência inovadora,
inspiradora para a parte da esquerda que tentava se renovar em muitos lugares
do mundo.
Tal inovação apresentava custos crescentes, à medida em que o
partido crescia. Na famosa lei de ferro das oligarquias, no início do século
XX, Robert Michels afirmou que “quem fala organização, fala oligarquização”.
Deixando de lado seu determinismo retrógrado, é possível dar crédito ao
pensador alemão nos dois eixos centrais de sua reflexão: as camadas dirigentes
tendem a desenvolver interesses próprios, diferenciados daqueles da massa de
militantes, e a eficiência organizativa trabalha contra a democracia. De fato,
é fácil “discutir com as bases” quando se é um ator político pouco relevante.
Depois, fica cada vez mais claro que o timing da negociação política prevê a
concentração das decisões nas mãos dos líderes.
Como costuma ocorrer em organizações políticas inovadoras, o
crescimento levou a tensões crescentes entre percepções mais “realistas”, que
julgavam necessário um esforço de adaptação ao mundo da política tal como ele
é, e outras mais principistas. A conquista das primeiras prefeituras municipais
foi, em muitos casos, dramática. Mas até então o partido lutava para não
renunciar à possibilidade do exercício localizado do poder político sem abrir
mão dos princípios gerais que orientavam sua organização.
É possível datar com precisão o momento em que o PT iniciou
sua caminhada para se transformar naquilo que é hoje: o anúncio do resultado do
primeiro turno das eleições de 1989. Quando Lula passa à etapa final da
disputa, ao lado de Fernando Collor, parecia se tornar claro que um bom
aproveitamento do clima político, aliado a um marketing eleitoral competente,
proporcionaria um acesso mais rápido ao poder do que o trabalho de mobilização
no qual o partido apostava desde sua fundação. O fato de que o partido hesitou
em aceitar, no segundo turno, o apoio de políticos conservadores, mas
democratas, é em geral apontado como uma demonstração de seu caráter naïf e de
seu despreparo para a política real. É provável. Mas não dá para não respeitar
tal purismo, sobretudo à luz do PT posterior, para o qual ninguém, de Maluf a
Collor, de Sarney a Jader Barbalho, de Kátia Abreu a Michel Temer, está fora do
alcance de uma possível aliança.
Entre a hesitação inicial de 1989 e a política de alianças
indiscriminada adotada a partir de 2002 houve uma evolução paulatina, eleição
após eleição. Evolução também no discurso, no programa político, na forma de
fazer campanha. É razoável dizer que o PT abandonou a ideia de que a campanha
eleitoral era um momento de educação política. Quando Duda Mendonça assume, na
quarta candidatura presidencial de Lula, já está claro que não se deve mais
disputar a agenda, nem os enquadramentos ou valores dominantes. Para ganhar a
eleição, é mais fácil mudar o candidato para se encaixar nas expectativas
vigentes. Estava surgindo o Lulinha paz e amor, que não é só uma persona do
marketing eleitoral, mas a indicação da visão de que seria possível fazer
política transcendendo os conflitos.
Só que os conflitos não são transcendidos, são escamoteados.
E quando são escamoteados, isso sempre trabalha em favor daqueles que já estão
em posição privilegiada. O governo Lula vendeu ao capital sua capacidade de
apaziguar os movimentos sociais. Com a elite política, prosseguiu no
toma-lá-dá-cá típico brasileiro, agravado pelo fato de que, dada a desconfiança
que o PT precisava enfrentar, os termos da troca eram piores. Graças a isso,
ganhou a possibilidade de levar a cabo uma política de combate à miséria. Sem
negar sua importância, o fato é que foram 12 anos em que o avanço social se
mediu exclusivamente pelo acesso ao consumo. A fragilidade de uma política que
não enfrentou nenhuma questão estrutural nem desafiou privilégios fica patente
pela facilidade com que os supostos avanços da era petista vão sendo
desmontados. Voltamos ao momento do desemprego, da redução do poder de compra
dos salários, do desinvestimento nos serviços públicos. E, como o ambiente parece
propício, de roldão são acrescentados retrocessos ainda maiores: precarização
das relações de trabalho, criminalização da juventude, legislação retrógrada no
campo da família e da sexualidade.
O momento, em suma, é o da maior derrota das forças progressistas
no Brasil após o golpe de 1964. E uma parcela considerável da responsabilidade
recai sobre um partido que não soube ou não quis aproveitar as oportunidades de
que dispôs para consolidar algum tipo de avanço político e social.
Ao fim do processo, a esquerda brasileira parece órfã. Nos
últimos 30 anos, o PT ocupou uma posição de absoluta centralidade neste campo,
seja sob a chave da utopia, seja sob a chave do possível. Mesmo os críticos,
mesmo os não petistas, encaravam o partido com um pilar incontornável da
esquerda. Hoje, é cada vez mais evidente que a única maneira de ler o PT é como um
experimento fracassado. Torna-se necessário pensar novas formas de organização e ação, novos
instrumentos para fazer política, superando o saldo de desencanto e de
desesperança que o final melancólico dos governos petistas deixa.
***
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência
Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de
Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e
Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente.
Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa
(Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma
introdução (Boitempo, 2014). Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente
às sextas.
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