Via Agência Pública
Apenas em janeiro deste ano, a Eletronorte, Centrais Elétricas do
Norte do Brasil, terminou enfim de pagar indenizações para milhares de
famílias deslocadas compulsoriamente de suas casas por causa de uma
mega-hidrelétrica na Amazônia. Não, não se trata de Belo Monte, mas de
uma história que, mais de 30 anos depois, ainda não acabou para aquelas
pessoas: a construção da Hidrelétrica de Tucuruí pelo regime militar.
Entre setembro de 2016 e janeiro de 2017, a empresa de energia pagou
R$ 5.088,00 a 2.343 famílias removidas à época da construção da barragem
no rio Tocantins. A indenização refere-se a um programa social
compensatório que deveria gerar renda através de cooperativas em cada
município que faz parte da região do lago de Tucuruí, no sudeste do
Pará, o Proset. Não deu certo. “O rastro dessa barragem nos trouxe muito
prejuízo”, conta o morador da zona rural do município de Breu Branco,
Carlito Nascimento: “Muito prejuízo e muito sofrimento pra todo mundo”,
resume a aposentada Olgarina Araújo.
Assim como eles, todos os primeiros moradores do município foram
parar lá contra a vontade. O Novo Breu, como é chamado pelos mais
antigos, só nasceu por causa da vila de Breu Branco, um dos territórios
inundados pelo lago artificial formado pela hidrelétrica. Com 2875 km²
de área, o lago formou 1.660 ilhas e levou para o fundo todos os
territórios que ficavam entre os municípios de Tucuruí e Jatobal,
interligados pela Estrada de Ferro Tocantins, além de terras dos
municípios de Jacundá e Itupiranga. Um processo que desde o levantamento
inicial, feito por técnicos do governo militar em 1978, até a remoção
nos primeiros anos da década de 1980 expulsou mais de 23 mil pessoas de
suas casas.
“Quando chegou o tempo da mudança, eles chegaram com o caminhão,
botou a mudança em cima, já tinha as casinha aqui pronta, casa de
madeira, com telha Brasilit, e aí nós recebemos as casas. Até fiquemo
alegre, porque eu não tinha uma casinha como aquela, com banheiro dentro
de casa. Só que nós fomos colocados dentro de uma casa, com a mulher e
os filhos, sem apoio nenhum”, conta Carlito Nascimento.
Após 32 anos desde a conclusão da primeira fase da obra, as memórias
permanecem vivas. Construída entre 1975 e 1985 pela empreiteira Camargo
Corrêa e operada pela Eletronorte, a hidrelétrica chegou à vida dessas
pessoas acompanhada da promessa de progresso e desenvolvimento para a
região. O objetivo era gerar energia a baixo custo para projetos de
extração mineral como a Alumínio Brasileiro AS (Albrás) e a Alumina do
Norte do Brasil S.A. (Alunorte), no Pará, e o Consórcio de Alumínio do
Maranhão (Alumar).
Um dos relatórios da Comissão da Verdade (CNV) destaca que tanto a
Usina Hidrelétrica quanto a Estrada de Ferro Carajás foram construídas
para apoiar a exploração do minério no Pará e impactaram diretamente não
apenas camponeses, como também vários povos indígenas da região. “Os
Parakanã, por exemplo, contatados e removidos para possibilitar a
estrada Transamazônica, seriam removidos novamente para dar lugar ao
lago de Tucuruí. Seriam deslocados cinco vezes entre 1971 e 1977”,
afirma a CNV.
Apenas a primeira fase da obra custou US$ 7,5 bilhões, e até hoje
existem controvérsias quanto ao valor total, já que o regime era pouco
transparente sobre os gastos e a imprensa, censurada. Hoje, Tucuruí gera
mais de 8.000 megawatts e abastece parte do Pará, Maranhão, alguns
estados do Nordeste e, complementarmente, do Sudeste e Sul do Brasil.
Um relatório da Comissão Mundial de Barragens sobre a usina publicado
em 2000 expressa que “a existência de setores até hoje insatisfeitos
com as políticas de indenização e ressarcimento indica as consequências
da postura existente à época da implantação do empreendimento de negar a
existência de conflitos de interesse em relação ao projeto, em nome de
um ‘interesse geral’ definido por ‘instâncias superiores’. A indefinição
de uma política setorial para o trato das questões sociais determinou
que os critérios de indenização e ressarcimento dos segmentos sociais
afetados pelo empreendimento fossem sendo estabelecidos em paralelo aos
processos de deslocamento e reassentamento, pressionados pelos
movimentos sociais organizados”.
Deslocamento e memória
Jorge Mercês, antropólogo do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Pará, argumenta que o
deslocamento compulsório causado pela barragem gerou efeitos além dos
que podem ser compensados com indenizações: “O que a gente tem como
narrativa central dessas pessoas é a ideia de que eles não estão no
lugar deles. É a ideia do não pertencimento, do não fazer parte daqueles
espaços onde estão. E como manifestam isso? Visivelmente através da
incessante reforma nas casas. Há 32 anos os moradores vêm reformando as
casas deles”.
A moradora Osmarina Carvalho concorda: “Se não tivesse barragem, a
gente não saía, não. De jeito nenhum. Porque a gente vivia bem, né?”.
Carlito Nascimento lembra-se de cada detalhe do lugar afogado: “Era uma
vila pequena, tinha umas 400 casas, mais ou menos. Mas era muito boa de
se morar. Pra ser sincero, eu ainda não morei num lugar melhor do que
lá. Fartura, tinha de tudo. Se a gente fazia uma rocinha pra ajudar, aí
pronto, não precisava mais de nada. Porque tinha castanha à vontade.
Peixe sobrava, caça também… Eu tinha uma vida boa, que a gente não
consegue esquecer”.
A vila que hoje existe apenas na memória fazia parte de uma região
onde 14 povoados se constituíram à margem da Estrada de Ferro Tocantins,
cuja construção foi iniciada em 1893 e concluída só em meados do século
seguinte. À beira da ferrovia de 117 km, famílias, igrejas, escolas,
pequenos comércios e comunidades se formaram. O transporte era um meio
para as trocas comerciais, em especial o escoamento da castanha-do-pará,
abundante na região. O tráfego de trem começou a ser interrompido em
1967 e foi desativado em 1973.
Localizada a sete horas de distância de Belém e a 15 minutos da Vila
Permanente de Tucuruí, a atual cidade de Breu Branco, ou Novo Breu, para
os moradores, tem uma população estimada em 62.737 habitantes, segundo o
IBGE. O comércio e a prestação de serviços são importantes atividades
econômicas, já que a desconexão com o rio Tocantins não permite o
desenvolvimento da agricultura, pecuária e extrativismo de forma
expressiva. O setor industrial é o maior responsável pelo Produto
Interno Bruto da cidade, embora seja a segunda atividade que mais gera
empregos, ficando atrás dos serviços. A principal atividade é a extração
de madeira.
Por meio da Gerência de Implantação de Ações Socioambientais, a
Eletronorte afirma que “onde existiu alegação de que a Eletronorte
impactou, ela esteve no local, fez o levantamento com técnicos
especializados e avaliou em função de valores de mercado, levando em
consideração o social – a parte sentimental inclusive –, e ressarciu.
Aqueles que não concordassem com o resultado dessa análise tinham a
liberdade de ir à Justiça”, explica o engenheiro Francisco Assis
Fernandes.
Segundo ele, foram abertos 5.700 processos exigindo indenização pelas
casas e roças inundadas por causa da formação do lago à época da
construção da barragem – todos os casos, diz o engenheiro, foram pagos.
No entanto, para muitas famílias, o valor recebido não foi o
suficiente para compensar as perdas, o que gerou sentimento de
injustiça. São homens e mulheres que mesmo após as décadas transcorridas
ainda sentem as consequências da desterritorialização – e não se
conformam com o afogamento de suas histórias. A Pública ouviu o relato de três mulheres, hoje idosas, sobre a vida inundada por Tucuruí.
Imagens das personagens: Vitória Mendes/Agência Pública
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