sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

COMO SE FAZ UM LÍDER QUILOMBOLA


João Batista, com a filha Rebeca (Foto: Smitson Oliveira - Seabra/Chapada)

De trabalhador rural e ajudante de pedreiro a dirigente sindical e da associação dos moradores do quilombo Vão das Palmeiras: a dura e exitosa trajetória dum militante comunitário.

Por Jadson Oliveira – jornalista/blogueiro – editor do Blog Evidentemente

Corria o ano de 2012. João Batista já tinha passado por muitos desafios na sua vida de negro pobre, quilombola, mas aquele lhe parecia maior, mais estranho, uma grande novidade: Tiago queria que ele se tornasse presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo do Vão das Palmeiras (município de Seabra, Chapada, interior da Bahia). Com um detalhe curioso: disse que era “só no nome, não é pra valer”. Como assim? Tiago explicou: é que ele era presidente da associação, mas ia ser candidato a vereador e achava que uma coisa podia impedir a outra. Então ele disputava a vereança, continuando presidente de fato, mas não oficialmente.

João Batista hesitava. Achava difícil falar em público, discursar numa reunião e ainda tinha aquele complicador, “só no nome”. Será que esse negócio ia dar certo? Já tinha se saído bem em muitas empreitadas na sua ainda curta existência, estava com 28 anos, sempre na labuta, lavrando a terra, conseguiu a duras penas estudar até o segundo grau, esteve em São Paulo trabalhando na construção de ajudante de pedreiro durante um ano, depois mais cinco, nesta altura já promovido a armador. Ao voltar à sua terra, pôde continuar na construção pois já havia por lá obras do projeto do governo federal Minha Casa Minha Vida.

Já carregava na carcunda, portanto, alguma experiência de vida e trabalho. Mas hesitava. Não era homem de se amofinar, mas hesitava, aquele negócio de ser presidente, tomar a palavra numa reunião, todo mundo olhando pra ele e se gaguejasse e as pessoas dessem risada? Mas tinha um precedente encorajador, talvez até tenha sido por isso que Tiago o escolhera: uma vez se discutia sobre a taxa que as famílias pagavam pela água e era arrecadada pela associação dos moradores do Velame (distrito vizinho ao quilombo). Acontece que a água é retirada da área do Vão das Palmeiras e fornecida inclusive aos usuários do Velame. Então o correto seria a associação do quilombo cobrar a taxa, inclusive do pessoal do Velame, e ficar com o dinheiro arrecadado.

Foi o que pensou João Batista, que estava lá espiando a reunião. Pensou e agiu. Pela primeira vez, passando por cima da timidez, pediu a palavra e falou numa reunião. “O salão estava cheio”, lembra ele. Feliz, viu a grande maioria dos presentes apoiar sua intervenção. Foi o seu batismo de fogo, e vitorioso. Os quilombolas, que eram “donos” da água, conquistaram o direito de arrecadar a taxa, graças à sua proposta. Estava nascendo ali uma nova liderança entre a comunidade.

Trocando em miúdos: João Batista acabou topando o plano de Tiago e, enquanto este se ocupava da campanha eleitoral, o que seria presidente “só no nome” começou a ser pressionado pelos associados. Havia, claro, muitas demandas e “você é ou não é o presidente?”, cobravam. E ele foi assumindo pouco a pouco o papel para o qual parecia estar destinado, conforme mostrou o desenrolar dos acontecimentos.

Foram dois mandatos de dois anos cada – de 2012 a 2016 -, com muitas lutas, dificuldades e também muitas realizações. João Batista relembra os passos dessa difícil e exitosa caminhada, fala do respeito obtido pela comunidade e pela entidade que a representa, exalta o apoio do grupo de jovens – Jovens em Ação - e dos moradores e também a participação ativa de sua mulher em toda sua trajetória.

E relata uma grande alegria: foi justamente num dia em que se comemorava o Dia da Consciência Negra – 20 de novembro de 2014. Ele estava chegando de Salvador onde, no dia anterior, tinha recebido o título de propriedade coletiva das terras do quilombo, em nome da associação. (Aí ele menciona a ajuda nas articulações políticas do então deputado federal baiano Luiz Alberto (PT), inclusive no processo de reconhecimento e certificação por parte da Fundação Palmares, órgão do Ministério da Cultura). Foi uma festa, um momento de felicidade do qual “a gente nunca esquece”, diria o próprio João Batista.

(Das cerca de 5.000 comunidades remanescentes de quilombo existentes no Brasil, apenas quase 300 conseguiram até hoje o título de propriedade da terra, apesar dela ter sido reconhecida oficialmente há 30 anos, expressa na Constituição de 1988, injustiça que atualmente parece mais difícil de ser reparada, já que o novo governo, presidido por Jair Bolsonaro, teve sua campanha eleitoral assentada na negação das políticas inclusivas. Aliás, neste particular, o município de Seabra deve ser um caso raro: dentre os 11 quilombos reconhecidos, 10 já obtiveram seus títulos de propriedade).

E também uma grande tristeza: foi “ter perdido” para São Paulo um jovem militante promissor. Alex Soares, pouco mais de 20 anos, teve que deixar sua gente e sua terra correndo atrás do sonho de ganhar dinheiro e construir uma casa para a família. João Batista se consola seguro de que ele voltará em breve, mesmo porque sua casa será, claro, em Vão das Palmeiras. E também porque, de fato, Alex nunca abandonou totalmente a militância: volta e meia ele aparece no grupo do Whatsapp opinando, sugerindo, participando.

Ele revela um sonho: entrar na universidade, fazer o curso de História. Concluiu o segundo grau em 2005 e lamenta ter sido obrigado a parar. “Não sei quando será possível, talvez quando os meninos aprenderem a tirar uma melancia na roça”, brinca João Batista. Ele foi o quarto jovem (o primeiro homem) da comunidade a completar o segundo grau. De lá para cá esse número aumentou, inclusive há alguns cursando em Seabra o IFBA (Instituto Federal da Bahia). Diz meio encabulado que aconselha tanto a juventude a estudar e entrar na universidade, porém ele próprio, infelizmente, não pôde ainda dar o exemplo completo. Mas o curso de História o espera, quem sabe?

PS: Além de agricultor e atualmente tesoureiro da associação, João Batista dos Santos, hoje com 34 anos, faz parte da diretoria do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar de Seabra e dirige uma rádio comunitária. É casado com Magali Santos Cassimiro e tem quatro filhos.

Tiago José Cassimiro, a quem João Batista sucedeu, foi o terceiro presidente da associação. Antes dele, a entidade foi presidida por Eunápio Mendes da Silva (Naipinho). Hoje há uma presidenta: Selma Marques.

A associação tem 380 filiados. O quilombo mede 1.023 hectares, reúne 430 famílias, tendo em torno de 1.000 habitantes, levando em conta os moradores mais permanentes.

A maioria das informações é do próprio João Batista. Os dados sobre os 5.000 quilombos reconhecidos no país são de matéria do blog The Intercept Brasil – ‘Com mais de 4,8 mil comunidades sem títulos, quilombolas entrarão com ação por danos morais’.

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