Evo Morales renunciou à presidência da Bolívia, no domingo (10)
Rafaela Marques *
Especial para o Congresso em Foco
Evo Morales renunciou à presidência da Bolívia no final da tarde de domingo (10), em um discurso transmitido em cadeia nacional de televisão. O gesto marca o ápice de um processo de deterioração da democracia boliviana, com uma polarização que começa muito antes do relatório da OEA recomendando a anulação do primeiro turno das eleições realizadas no último dia 20 de outubro.
Lá como cá, as instituições políticas vêm sendo assoreadas, ao mesmo tempo em que as igrejas evangélicas adquirem status e importância, acomodando seus interesses nos centros decisórios de poderes locais – políticos e jurídicos. Na Bolívia, o pacto constitucional vinha sendo esgarçado paulatinamente. Promulgada em 2009, a Carta Magna deu aos presidentes o direito à reeleição. Morales já ocupava o cargo desde 2006, e se candidatou novamente naquele ano, fazendo uso desse direito recém-adquirido. Em 2014, ele argumentou que seu primeiro mandato havia se iniciado antes da nova Constituinte, portanto, sua reeleição era válida. Candidatou-se novamente e venceu. Em seguida, para pleitear um quarto mandato, convocou referendo para alterar a Constituição – e perdeu.
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Apesar desse revés, Morales tentou se impor e ignorou o descontentamento crescente com suas políticas, algumas delas de cunho liberal. Setores populares importantes que constituíam sua base de apoio romperam com o seu partido, o Movimento para o Socialismo (MAS). Contudo, amparado pelo Supremo Tribunal Eleitoral, ele manteve sua candidatura ao pleito realizado no último dia 20 de outubro. Nas urnas, seu opositor era Carlos Mesa, da Frente Revolucionária de Esquerda.
As eleições foram conturbadas. Com atrasos e interrupções na apuração dos resultados, protestos tomaram as principais cidades do país. Desde então, a situação se agravou. Quando Morales foi declarado presidente eleito, quatro dias após o pleito, um bloco de países se negou a reconhecer a vitória do MAS (Brasil, Estados Unidos, Argentina e Colômbia). Com as ruas em convulsão, registraram-se mortes, greves, saques e crises de desabastecimento.
A partir de então forças militares e setores das polícias locais se organizaram para forçar a saída de Morales. Fernando Camacho, chamado “El Macho” por seus admiradores, liderou os opositores de Morales. Presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz e ídolo da nova direita, ele anunciava no Twitter quantas horas e dias faltavam para a tomada do poder, mantendo em suspenso a respiração de simpatizantes e detratores de Morales.
Denuncio ante el mundo y pueblo boliviano que un oficial de la policía anunció públicamente que tiene instrucción de ejecutar una orden de aprehensión ilegal en contra de mi persona; asimismo, grupos violentos asaltaron mi domicilio. Los golpistas destruyen el Estado de Derecho.
Em seu discurso de renúncia, Morales denunciou que aliados de Camacho atearam fogo nas casas de sua irmã e outros correligionários do MAS. Sob ameaça de sequestros, os líderes políticos abriram mão de seus cargos, em efeito cascata.
Religião, moral e paramilitarismo
Foi nesse contexto que Camacho produziu uma das ilustrações mais reveladoras sobre a Bolívia e a América Latina sob expansão pentecostal. Nas imagens transmitidas ao vivo pelas redes sociais do diário El Deber no início da noite de ontem, ele chega ao Palácio Quemado, sede do governo boliviano, e ajoelha-se. Em seguida, estende uma bandeira do país e sobre ela deposita uma Bíblia.
O ato faz jus à sua trajetória. Um dos maiores trunfos de Camacho contra Morales sempre foi a denúncia da “ideologia de gênero”. Esse termo foi cunhado pela Igreja Católica para combater a disseminação de teorias feministas, e mais tarde apropriado por líderes evangélicos, que trataram de criar um espantalho capaz de resumir os temores muito presentes nas sociedades latinas e africanas, ex-colônias onde as promessas de progresso e desenvolvimento baseadas no bem-estar social pleno jamais vingaram – aqueles relativos às ameaças de desestabilização da família, célula fundamental de apoio mútuo.
Foi assim que as pautas morais – que explicam da corrupção ao alcoolismo – passaram a protagonizar o debate político, constituindo-se em nascedouro de um imenso campo conservador. Enquanto as igrejas difundiram a noção de que a família está em risco porque os governos de esquerda foram abertos a todo tipo de degeneração (como o roubo, a homossexualidade, o feminismo etc.), os cidadãos das cidades latino-americanas precisaram lidar com o narcotráfico, as milícias, a violência policial e as baixas perspectivas de progresso. Nestes territórios de vulnerabilidade, as pessoas encontram nas igrejas acolhimento e redes de relações proveitosas, onde “irmão ajuda irmão”. Por isso, parece óbvio que os pastores sejam mais confiáveis do que políticos.
Curiosamente, Camacho é católico, acomodando-se em uma classificação que a antropóloga Christina Vital chama de “Amigos dos Evangélicos” (da qual faz parte também o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, eleito com apoio da comunidade evangélica). Advogado e empresário nascido em uma das famílias mais ricas da região de Santa Cruz, Camacho não tem filiação partidária, mas tornou-se um líder político em perfeita consonância com o espírito do seu tempo. Há quase duas décadas começou seu ativismo político na União Juvenil Cruceñista, organização mais tarde descrita pela Federação Internacional de Direitos Humanos como um “grupo paramilitar” em cruzada contra indígenas e suas organizações.
Em seus discursos, costuma atacar sistematicamente índios e mulheres, defender o endurecimento penal e a criminalização da homossexualidade. Em suas transmissões ao vivo e aparições públicas, cuida para que imagens religiosas e bíblias estejam sempre à vista no cenário.
Milenarismo e teologia do domínio
Neste início de século, paixões mortais como o racismo, a xenofobia, a homofobia e o machismo se manifestam por meio do renascimento de movimentos supremacistas. Diversas novas formas de apartheid se estabelecem, novos impulsos separatistas tomam forma, outros muros são levantados, a militarização ganha escala, novas fronteiras são erigidas, os poderes se fragmentam em inumeráveis divisões internas.
No contexto latino-americano, mudanças socioculturais apontam para um processo de transição religiosa, com a expansão numérica da adesão à religião evangélica atingindo níveis extraordinários. No Brasil, o segmento passou de 2% da população a quase 25% em pouco mais de duas décadas, e os números estão defasados. Na Bolívia, aqueles que se declaram evangélicos são hoje 16% do total de habitantes. Enquanto isso, planos de poder que flertam com o autoritarismo se movem sob a estruturas políticas, respaldados por sistemas de crenças que se relacionam ao milenarismo e à teologia do domínio.
O milenarismo anuncia a segunda vinda de Cristo após a consolidação da ruína entre os homens, pois “a decadência faz parte dos planos de Deus”. Suas raízes remontam ao final do século 19 e à primeira metade do século 20, quando a escassez provocada pela crise de 1929 e pelas duas grandes guerras passaram a ser interpretadas a partir de uma lógica segundo “os eleitos” subirão ao reino dos céus e retornarão à Terra no juízo final, acompanhados de Jesus Cristo, para ao lado dele premiarem os fiéis e julgarem os descrentes.
Para que esse encontro não tarde a acontecer, faz sentido apressar a ruína, recusar-se à filantropia, execrar políticas sociais. Os males sociais são vistos como castigo aos infiéis. Portanto, a pobreza dos latinos, indígenas e negros só será superada pela conversão desses povos.
O milenarismo deu origem a uma corrente em pleno vigor nos dias atuais: a “teologia do domínio”, que afirma que o domínio e a autoridade sobre a Terra foram dados ao homem por Deus. A fraqueza humana, porém, se manifestou no pecado original, o que permitiu que Satanás usurpasse o controle. Os principados e potestades, dominadores deste mundo tenebroso, se fortalecem nas práticas e ritos das religiões de matriz africana.
Ainda segundo essa crença, a igreja é o instrumento divino para que Deus retome o domínio, cabendo a ela expurgar todos os males. Para isso, os crentes deverão exercer o controle das instituições, pois Jesus não poderá voltar até que a Igreja tenha subjugado a Terra. Para alcançar esse objetivo, será preciso formar as elites do amanhã, que serão capazes de transformar o mundo ocupando os espaços de poder das instituições, assim como cada um dos fiéis deve fazer de seu local de trabalho um ambiente onde deve ser possível exercer a liderança, dominar e ditar regras de acordo com os valores do reino de Deus.
O crescente poder de influência dessas Igrejas reflete estratégias de mercado. Aliando-se a setores do catolicismo e do espiritismo, muitos dos pastores que propagam o milenarismo e teologia do domínio travestem de hermenêutica teológica os mais simples e arraigados discursos de ódio. Diante disso, não raro alguns segmentos minoritários do campo evangélico, pesquisadores e intelectuais denunciam o componente racista desta lógica dogmática.
A teologia do domínio enxerga o pluralismo característico das culturas latinas como uma ameaça, que deve ser vencida por meio da reversão de pactos constitucionais e da consequente obstrução de acesso a direitos que já pareciam consolidados, ainda que para isso os líderes religiosos flertem descaradamente com o autoritarismo.
No Brasil, como na Bolívia, a empreitada tem tido sucesso – sem que se veja um argumento convincente capaz de detê-la. Apressar a ruína pode não parecer uma boa ideia, porque ao final e ao cabo Jesus Cristo pode não dar as caras. Mas, para quem já vive sob escombros, caminhar sobre os restos da democracia pode ser uma ótima opção se os degraus a percorrer levarem direto ao paraíso e ao reino dos céus.
* Rafaela Marques é jornalista e pesquisadora. Especialista em pentecostalismo, é mestre em Cultura e Territórios pela Universidade Federal Fluminense.
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