Via Jota Por MIGUEL PEREIRA NETO e
CLARA MOURA MASIERO
Tema está tramitando no Congresso Nacional, com propostas de lei que visam a justamente criminalizar prática
Muito se tem noticiado a respeito de elevação de preço no Brasil, como decorrência da pandemia de Covid-19, sobretudo de produtos cuja demanda aumentou significativamente, tais como álcool em gel e máscaras de proteção respiratória.
Consequentemente, cresce também a preocupação dos órgãos estatais em relação ao tema, desencadeando ações fiscalizatórias por parte do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), dos Programas de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon), da Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça (Senacon) e, até mesmo, de Delegacias do Consumidor.
A propósito, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) publicou informativo com orientações aos agentes públicos em caso de ocorrência envolvendo elevação de preço de produtos essenciais: as quais envolvem desde a instauração de inquérito policial pelo crime contra a economia popular previsto no artigo 3º, VI, da Lei 1.521/1951; até a prisão em flagrante dos “comerciantes que elevarem os preços de forma abusiva”. [1]
Já o Ministério Público de Minas Gerais, por meio do Procon, emitiu, em 18 de março de 2020, o Aviso nº 4/2020, estabelecendo um parâmetro do que entenderia por aumento abusivo de preço: “percentual superior a 20% (vinte por cento) ao preço de compra”.
Ainda, segundo este documento, eventuais aumentos acima deste parâmetro constituiriam, em tese, prática abusiva punida pelo Código de Defesa do Consumidor (artigo 39, inciso X) e crime contra a economia popular (artigo 4º, “b”, da Lei 1.521/1951).
De fato, há notícia de operações policiais e prisões em decorrência da conduta de suposto aumento “abusivo” de preço. [2] Mas, afinal, tal conduta é crime? O objetivo deste breve artigo é responder a esta pergunta, sem adentrar o mérito a respeito dos aspectos anticoncorrenciais e consumeristas que também envolvem o tema.
Pois bem. Para se relacionar este tema com o direito penal, há que se atentar para duas leis: (i) a dos Crimes contra a Economia Popular (Lei 1.521/1951) e (ii) a que define os crimes contra as relações de consumo (Lei 8.137/1990).
O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) até prevê alguns crimes contra as relações de consumo, mas nenhum relacionado à precificação de produtos ou serviços.
A Lei dos Crimes contra a Economia Popular (Lei 1.521/1951), como o nome diz, visa a proteger a “economia popular”, que vem a ser o “complexo de interesses econômicos domésticos, familiares e individuais” [3]. Isto é, seria algo como um “patrimônio do povo”.
Portanto, no bojo desta lei, estão criminalizadas condutas potencialmente danosas a um indefinido número de pessoas e não a um consumidor individualizado, como sói ocorrer no âmbito do Código de Defesa do Consumidor.
De fato, eventual conduta de aumento abusivo de preço seria lesiva para um indeterminado número de pessoas, seja aos que adquiriram o produto por preço elevado, seja aos que deixaram de comprar o produto por ausência de condições, o que é difícil de quantificar. Mas esta conduta está tipificada na Lei dos Crimes contra a Economia Popular?
Como se pode perceber parágrafos acima, não há consenso nos informativos provenientes dos Ministérios Públicos dos Estados de São Paulo e Minas Gerais a respeito da tipificação da conduta de elevação “abusiva” de preço, pois cada um tipificou em artigo diverso da lei (artigos 3º, VI; e 4º, “b”, ambos da Lei 1.521/1951).
Vejamos. O artigo 3º, inciso VI, criminaliza a conduta de “provocar a alta ou baixa de preços (…) por meio de notícias falsas, operações fictícias ou qualquer outro artifício”. A leitura do dispositivo revela que não há a criminalização pura e simplesmente da conduta de aumentar o preço de forma abusiva ou acima de 20% que seja. A criminalização está voltada a condutas fraudulentas, enganosas, que venham a provocar aumento/diminuição de preço.
Portanto, a mera decisão comercial/empresarial de atribuição de preço de produto não é criminalizada per se. Assim, eventual aumento de preço em decorrência do aumento da demanda (ou, ainda, em decorrência da elevação dos preços dos insumos) a que o vendedor não deu causa por nenhum meio fraudulento (afinal decorrente da Covid-19), não configura o crime em questão.
O artigo 4º, alínea “b”, por sua vez, criminaliza a usura real, entendida ali como a conduta de “obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida”.
Tradicionalmente, o crime de usura envolve cobrança de juros abusivos (ou agiotagem); entretanto, em se tratando da usura real (e não da pecuniária prevista na alínea “a” do mesmo artigo [4]), aplica-se, em tese, a qualquer prestação, desde que haja “abuso” de uma situação de premente necessidade, inexperiência ou leviandade combinada com um acréscimo de 20% do lucro patrimonial.
Tecnicamente, é refutável a incidência de um crime de usura para uma conduta de precificação. Entretanto, considerando o contexto de pandemia e o informativo emitido pelo MPMG, há que se manter atenção quanto a isso, a fim de evitar riscos criminais.
Portanto, as sociedades empresárias – desde fabricantes, a distribuidores e comerciantes – deve manter sua política de precificação embasada em uma racionalidade econômica demonstrável.
Evidentemente, é natural haver elevação de preço em decorrência do aumento da demanda, portanto não há problema em remarcá-los, desde que em ambiente de livre comércio e, preferencialmente, com racionais aptos a justificá-lo.
Pois, para além dos riscos criminais, não se pode desconsiderar os eventuais problemas cíveis, com Código de Defesa do Consumidor, anticoncorrenciais, e até mesmo de ordem ética, sendo imprescindível se mantenham ativos e rigorosos os programas de compliance, preservando-se a integridade, transparência e conformidade nos negócios realizados.
A imagem da empresa, destarte, também é algo a se resguardar, ao lado de seu faturamento, de modo a que o seu crescimento não seja exploratório, mas consistente.
Por fim, observa-se que este tema está tramitando no Congresso Nacional, com propostas de lei que visam a justamente criminalizar “o aumento abusivo dos preços de produtos em situações de calamidade pública” [5]. O que reforça o argumento de que os tipos penais acima analisados não se aplicam para o ato de aumentar o preço em si no atual contexto
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