Via Agência Pública, por Elisangela Colodeti e Naiana Andrade
Todos os dias, dos 9 aos 11 anos, Ana Paula olhava apavorada para sua barriga imaginando que poderia haver dentro dela outra criança. Sem coragem de contar à mãe que havia sido estuprada, a menina escrevia cartas para si mesma numa tentativa de elaborar o que tinha vivido, e depois as queimava para que ninguém mais lesse. Foram dezenas de cartas escritas e queimadas ao longo de seis anos, e Ana Paula só parou o ritual aos 15, porque a mãe começou a perguntar o que a filha tanto queimava.
Nós nos encontramos com Ana Paula, hoje uma mulher de 25 anos, em Sete Lagoas, município de Minas Gerais. Ela nos recebeu no hospital onde trabalha como técnica de enfermagem para contar sua história e logo declarou que não se importava em dizer o nome real e mostrar o rosto para a reportagem. Em um momento de emoção, disse ter tirado do convívio com os pacientes – alguns também crianças e adolescentes vítimas de violência sexual – a coragem necessária para denunciar o que pode ser um dos maiores casos de crimes sexuais cometidos contra crianças da história de Minas.
A investigação começou quando Ana Paula Fernandes dos Santos foi finalmente à delegacia no dia 18 de outubro de 2019 denunciar a violência sofrida quando criança. Ao voltar para casa, ela escreveu mais uma vez seu relato. Agora, porém, em vez de queimá-lo, publicou nas redes sociais. Imediatamente, várias mulheres começaram a comentar que haviam sofrido a mesma violência que ela na infância. Ana Paula não havia dito o nome do agressor, mas todas sabiam de quem se tratava.
O caso levantou poeira na pequena cidade de Várzea da Palma, com 39 mil habitantes. Todos comentavam o escândalo envolvendo Dinamá Pereira de Resende, um simpático senhor de 54 anos nascido e criado na cidade que durante três décadas promoveu atividades religiosas e culturais gratuitas envolvendo crianças – especialmente meninas entre 6 e 14 anos de idade.
Quando começamos a reportagem em junho deste ano, tivemos acesso exclusivo ao inquérito policial finalizado em janeiro de 2020, que deu origem à ação penal que ainda corre na Justiça. Os procedimentos estão em segredo de justiça por conter informações de abusos recentes, envolvendo menores de idade. São depoimentos de 16 testemunhas e 14 mulheres e meninas que se declaram sobreviventes de violência sexual sofrida. Conversamos com dez delas, cujos relatos estão disponíveis ao longo do texto. Algumas quiseram dar o nome real, outras pediram que a identidade fosse preservada.
Segundo estimativa do delegado chefe das investigações, Guilherme Cardoso Vasconcelos, o número de casos pode ser muito maior do que as denúncias feitas. Isso porque desde 1987 pelo menos 5 mil crianças teriam passado pelas mãos de Dinamá, conforme diz o próprio suspeito, em depoimento ao inquérito policial.
Essas crianças teriam sido abusadas em diferentes cenários. Dinamá, segundo os depoimentos, cometia os crimes dentro das casas, no meio da rua e até mesmo no Centro Pastoral. Foi na igreja que ele criou a Liga Católica Mirim, em 1987, quando tinha 17 anos. Nessa liga, chamada por ele de “grupo católico social”, Dinamá reunia, semanalmente, crianças de 6 a 14 anos para ensinar o evangelho, louvores e cantos. Fora da igreja, ele criou grupos de dança folclórica e, durante as festas juninas, era ele quem ensaiava os alunos, dentro das escolas da cidade e da região. As meninas que aprendiam a dançar com ele no “Dinamá Show” eram chamadas de “Dinamitas”.
Foi num ensaio de quadrilha, numa escola municipal da cidade, que Ana Paula conheceu Dinamá. A popularidade dele era tanta que, em 2004, se sentia seguro para concorrer ao cargo de vereador. Não venceu as eleições, mas, de acordo com Ana Paula, usou crianças de seus grupos para distribuir material eleitoral. Ela era uma das ajudantes. Com a desculpa de que os santinhos tinham acabado, Dinamá teria pedido a ela que fosse à casa dele buscar mais. Lá, segundo ela, o estupro teria acontecido.
“Eu me lembro da roupa que eu vestia. Era uma calça com saia por cima, e uma blusa de florzinha que eu nunca mais consegui usar. Ele me pediu pra entrar na casa dele. Eu não queria, mas entrei. Eu confiava nele como quem confia em um professor. Lá dentro, ele me jogou na cama e tirou minha roupa. Eu não sabia o que ia acontecer, eu pensei que ele fosse me matar. Eu pedia pra ele parar. Eu sentia muita dor. Eu só queria que aquilo acabasse. Quando ele parou, era só o silêncio. Ele arrumou minha roupa, me subiu na moto e me deixou em casa, sem falar nada. Eu sentia nojo e medo. Nunca tive coragem de contar pra ninguém e me tornei outra criança. Eu não conseguia mais brincar, nem aprender as lições da escola.”
Nesses 30 anos, as atividades de Dinamá ganharam em Várzea da Palma o reconhecimento e apoio dos moradores e se conectaram de tal forma que rezas, danças e brincadeiras com fantasia de palhaço passaram a fazer parte de sua estratégia para trabalhar com um público muito específico. Virou o “Dinamá das crianças”: um homem que preenchia uma lacuna de visibilidade e de cuidado deixada pelo Estado e, muitas vezes, pela própria família, oferecendo acolhimento e até comida para meninos e meninas carentes.
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