quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

ARGENTINA: VIOLENTAÇÃO DE ESTADO


Coluna Diário de um Blogueiro: Jornalista e atual blougueiro Jadson Oliveira (Foto), 64 anos, trabalhou como jornalista, em diversos jornais e assessorias de comunicação, de 1974 a 2007, sempre em Salvador (Bahia). Na década de 70 militou no PCdoB e no movimento sindical bancário. Ao aposentar-se, em fevereiro/2007, começou a viajar pelo Brasil, América Latina e Caribe. Esteve em Cuba, Venezuela, Manaus, Belém/Ananindeua (quando do Fórum Social Mundial/2009) e Curitiba, com passagem por Palmas, Goiânia e Campo Grande. Depois Paraguai, Bolívia, Trindad Tobago , São Paulo e agora está na Argentina. virou viajante e blogueiro. Clic aqui e acesse o blog do Jadson Oliveira


Stella Hernández e Elida Deheza depois de depoimento em julgamento de crimes contra a humanidade (Foto: reprodução)
JUSTIÇA: NOVOS TESTEMUNHOS EM ROSARIO REVELAM OS NOMES DOS VIOLENTADORES E OS MECANISMOS DE ABUSO SISTEMÁTICO DE MULHERES PRESAS DURANTE A DITADURA. UMA VIOLÊNCIA QUE É CRIME DE LESA HUMANIDADE.


Por Sonia Tessa (Reproduzido de Las 12, suplemento do jornal argentino Página 12, de 10/12/2010)


As denúncias se fizeram ouvir com força nas últimas audiências do caso Díaz Bessone, no Tribunal Federal Oral número 2 de Rosario (cidade da província – estado – de Santa Fé, centro-leste do país). Duas testemunhas e vítimas, Stella Hernández e Elida Deheza, falaram na primeira pessoa. “A mim me violentou Mario Alfredo ‘El Cura’ Marcote”, disse Hernández, atual dirigente do Sindicato dos Jornalistas de Rosario, que foi sequestrada em janeiro de 1977. Contou que esse repressor, um dos seis acusados de crimes de lesa humanidade, era “el violador serial” do Serviço de Informações (SI), o centro clandestino de detenção que funcionava no centro de Rosario, por onde se calcula que passaram mais de 2.000 pessoas. O caso tem 93 vítimas e 160 testemunhas. Deheza acusou outro repressor, apelidado Kuryaki, que não faz parte deste processo.


Houve outras sobreviventes que não falaram dessa tortura específica, apesar de a terem sofrido. E houve outras tantas que relataram como suas companheiras a haviam sofrido. Por isso, Hernández expressou, ao final de seu depoimento, que falava de sua situação pelas companheiras que não estão, e pelas que – mesmo estando – não podem falar. “Quero que se condenem as violentações como crimes de lesa humanidade”, pediu ao tribunal integrado por uma mulher, Beatriz Barabani, e dois homens, Otmar Paulucci e Jorge Venegas Echagüe. Na segunda-feira passada houve um sinal positivo: Paulucci perguntou a outra sobrevivente se ela havia escutado falar de violentações. “Sim, Juani Bettanín e Stella Hernández estavam muito mal porque as haviam violentado”, foi a resposta que recebeu. Juani Bettanín era a mãe de Leonardo Bettanín, que foi deputado federal pela Tendência e caiu assassinado em 2 de janeiro de 1977 em sua casa do bairro Gráfico, em Rosario. Sua mãe, Juani, e a esposa de Leonardo, María Inés Luchetti, foram sequestradas e torturadas. Além disso, Juani – que tinha 54 anos – foi violentada.


“Eu lhe pedia por favor que não, mas ele me dizia: ‘abra as pernas, filha da puta’”


Assim se expressou Elida Deheza, de uma maneira clara, mesmo deixando escorrer lágrimas incontidas. “Eu lhe pedia por favor que não, mas ele me dizia: ‘abra as pernas, filha da puta’. E foi mais terrível do que a “picana” (choque elétrico), porque a gente se desmorona. Porque não se consegue com as torturas, isso foi como se o mundo desabasse aí. E pensava: ‘Olha se fico grávida deste monstro’. Eu me perguntei muito tempo se talvez tivesse gritado mais, poderia ter evitado”, disse. Tinha 19 anos quando foi presa, em 4 de janeiro de 1977. A culpa, a dúvida sobre si mesma, fazem parte dos efeitos da violência sexual nas mulheres, da reprovação social que as leva, muitas vezes, a ficarem caladas.


Stella relatou que devido à violentação não veio a menstruação durante todos os meses em que esteve presa, com o consequente terror de uma gravidez. Pôde reconhecer seu agressor porque, mesmo estando vendada, denunciou o ocorrido ante o chefe do local, Raúl Guzmán Alfaro, quem lhe fez tirar a venda, levou diante dele alguns outros repressores, lhes perguntou quem havia sido e prometeu punir o responsável, ainda que, claro, nunca o fez. “Foi uma farsa”, considerou Hernández.


Outra ex-detida, Ana Ferrari, contou que esteve a ponto de ser violentada, mas foi “salva” pelo interventor da polícia de Rosario, Agustín Feced, repressor emblemático que morreu oficialmente em 1988. O Comandante, como era chamado, o impediu ao grito de “a Ferrari é minha”. “Não me violentaram, devo lhe agradecer?”, perguntou com certa ironia a testemunha, em seu depoimento de 23 de novembro passado. Este episódio também demonstra que a violência sexual não estava proibida, e sim fazia parte da rotina. Feced, máxima autoridade policial da cidade, não proibiu todas as violentações, somente proibiu essa.


“O sacerdote me disse que o choque elétrico era um método aceitável para se obter informação numa guerra”


Além das denúncias falando na primeira pessoa, e da coragem que isso requer às denunciantes, os testemunhos de que a violência sexual era fato sistemático foram contundentes também falando na terceira pessoa. Assim o afirmou María Inés Luchetti de Bettanín, que denunciou tais crimes em seu momento – em pleno 1977 – ante o então capelão policial Eugenio Zitelli, atual bispo da cidade de Casilda. “Um dia lhe pedi segredo de confissão e lhe contei que tinham vindo várias moças torturadas e violentadas. O sacerdote me disse que a “picana” elétrica era um método aceitável para se obter informação numa guerra, mas o outro não, que lhe haviam prometido que não aconteceria, porque tinha a ver com a moral”, relatou a sobrevivente.


Uma afirmação que os homens repetem quando testemunham é que os repressores se irritavam com as mulheres. Inclusive, o torturador mais identificado com este processo, José Rubén “El Ciego” Lofiego, chegou a dizer a seu superior que “as mulheres têm um nível maior de resistência à tortura”, em frente a uma das mulheres torturadas. Mesmo considerando que todas as vítimas do terrorismo de Estado tenham sofrido atrocidades, o componente de gênero esteve presente. A dupla reprovação às militantes consistia não só em haver optado por uma prática de transformação política e social, mas também por haver “traído” as atribuições históricas das mulheres.


No entanto, outra das testemunhas desta semana, Daniel Gollán, mencionou que tinha sido empalado, enquanto os torturadores faziam alusões à sua sexualidade. De maneira que não só as mulheres foram vítimas deste delito específico.


Nesta instância do processo, a violência sexual não é observada penalmente. A partir das denúncias, o procurador que atua no caso, Gonzalo Stara, fará um arrazoado para dar origem a um novo processo. “A legislação internacional e a jurisprudência consolidaram uma base jurídica na qual existe uma interpretação de tais fatos no contexto em que ocorreram, considerando-os como crimes contra a humanidade”, explicou Stara.


Se os magistrados sabem escutar, abre-se um caminho de justiça para uma violência que esteve silenciada por muitos anos


Um amicus curiae elaborado pelo Instituto de Género, Derecho y Desarrollo (Insgenar) y Cladem para o caso Riveros, que tramita nos tribunais de San Martín, estabelece com toda contundência porque os crimes sexuais no marco do terrorismo de Estado devem ser considerados de lesa humanidade e, portanto, imprescritíveis. Porque não somente foram sistemáticos, como também se produziram no contexto de um ataque sistemático contra a população civil indefesa, como estabelece o Estatuto de Roma. Este documento foi difundido por Las 12 em março deste ano.


Neste caso, com Marcote, há um responsável direto, denunciado por – até agora – uma sobrevivente. A jurisprudência do Tribunal Federal Oral de Mar del Plata contra Gregorio Molina, condenado por violentação em junho, permite alimentar a esperança de uma punição concreta.


A advogada da equipe jurídica de Familiares de Presos e Desaparecidos por Razões Políticas, Gabriela Durruty, ressaltou que “as leis de impunidade não incluíam a violentação; então, nós vamos pedir ao tribunal que considere que são crimes de lesa humanidade pelo contexto em que ocorreram e portanto não estão prescritos, daí temos que pedir ao juiz de instrução que indague e instrua a acusação”. Quer dizer, se os magistrados e os operadores judiciais sabem escutar, abre-se um caminho de justiça para uma violência que esteve silenciada por muitos anos.


Tradução: Jadson Oliveira

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