sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Artigo de Emiliano José: Mirtes e o instinto da loba

Deputado Emiliano José (PT)


Eu estava em São Paulo, nas proximidades da Batalha da Maria Antonia, como ficou conhecido o embate que envolveu estudantes do Mackenzie, vinculados ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e os da Faculdade de Filosofia da USP. Aqueles constituindo-se como um grupo paramilitar, os da USP sem armas, e reagindo com paus e pedras. Um secundarista, José Guimarães, foi assassinado à bala pelos mackenzistas. Uma outra jovem secundarista, 16 anos, teve as duas pernas queimadas com ácido sulfúrico. Eram pernas lindas, as de Mirtes. Viera do Ceará, para a reunião da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e se envolveu naquela batalha, 3 de outubro de 1968.

Mirtes, hoje avó de José Lucas, Carlos Eduardo e Clarice, vive em Fortaleza. Sobreviveu. Repete com Leon Bloy que “sofrer passa, ter sofrido não passa nunca”. Quem viveu experiências-limite como a dela, quem experimentou clandestinidade, quem ainda prosseguiu na luta, tem a pele curtida, é verdade. Mas, também, marcas que não desaparecem, por mais que se tente, por mais que se construa um estado de espírito que permita tocar a vida.

Estive com ela, recentemente, aqui na Bahia. Uma emoção muito grande revê-la. Eu a conheci no Congresso da UBES, em Guaratinguetá, naquele outubro. Fui eleito um dos vice-presidentes da entidade. Fora a última vez que a vira, há, portanto, 44 anos. Cazuza: o tempo não para. Só agora, superando conflitos íntimos, e compreendendo que a humanidade caminha através da experiência do passado, é que resolveu procurar os direitos dela na Comissão Nacional de Anistia. Tem todas as razões para tanto.

Aqui, veio em busca do tempo perdido, em amplo sentido. Em 1973, clandestina, militante da Ação Popular (AP), organização revolucionária de combate à ditadura, procurava sobreviver como jornalista na Tribuna da Bahia. Só se lembrava de dois nomes, Paulo Roberto Sampaio e Paulo Tavares, os dois, meus contemporâneos de Tribuna quando saí da prisão em 1974. Paulo Sampaio, com quem conseguiu conversar por telefone, não se lembrava dela, passado tanto tempo. Com Paulo Tavares não esteve. Desistiu de fazer contar esse tempo no pedido à Comissão Nacional da Anistia.

Em outubro, 1973, outro outubro sombrio na vida dela, recebe na Tribuna, um bilhete de Gildo Macedo Lacerda, dirigente da AP: saia daí com a roupa do corpo, nossos companheiros estão sendo presos. Saiu. Depois soube: Gildo; a  mulher dele, Mariluce; Oldack de Miranda e muitos outros militantes foram presos. Gildo foi levado para Pernambuco e lá, morto. Oldack foi levado para o mesmo Estado, só para ser torturado.

Mariluce estava grávida de Tessa, que nunca conhecerá o pai. Um militante tinha se passado para o outro lado, Gilberto Prata, e entregou todos. Naquele outubro, os dirigentes da AP em todo o País foram metodicamente assassinados na tortura. Recebi essa notícia preso, na Lemos de Brito, onde estava desde 1970.

Essas dores ela carrega. Nunca as deixarão, mesmo que saiba viver no meio delas. Dores mais fortes que o ácido que consumiu suas pernas, que a deixou três meses no Hospital Samaritano, em São Paulo, submetida a não sabe quantas cirurgias. Nunca deixará de ser grata a três mulheres especiais – mães à Gorki – que souberam praticar solidariedade, que souberam amá-la profundamente: Therezinha Zerbini, Jovina Pessoa e Ada. De Ada, que pode ser Oliveira, mãe de Pedro Oliveira, que começou a vida política de esquerda comigo, me lembro muito, era amigo, e tinha por ela uma admiração muito grande. Therezinha, como se sabe, foi uma das heroínas da resistência, e Jovina, também conhecida, no meu caso, de longe. Dou a palavra a Mirtes, palavras escolhidas a esmo de seu conto ou novela ou confissões denominado “Estrovenga”:

“Aviso: sigo minha própria sombra, nado em fumaças. Vasta chuva no molhado e a inspiração de brumas. Alucinação ou fumaça, meu intervalo de culpas prega-se em fios. Débil grito principio, entretanto venho aos uivos, quase instinto de loba. A tosse do século passado remonta-se. Barulheira sob túmulos. Página virada, volto à estrada caminho de luzes. Um dia nosso pouso será todo paz.”

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