Via Agência Pública
Por Natalia Viana, Andrew Fishman e Maryam Saleh
Deltan Dallagnol e Vladimir Aras não entregaram nomes de pelo menos 17 americanos que estiveram em Curitiba em 2015 sem conhecimento do Ministério da Justiça
No dia 5 de outubro de 2015, Deltan Dallagnol, procurador-chefe da força-tarefa da Lava Jato, mal dormiu; chegou de uma viagem e foi direto para a sede do Ministério Público Federal (MPF) no centro de Curitiba, onde trabalhou até depois da meia-noite. No dia seguinte, acordou às 7 da manhã e correu de volta para o escritório. Ele já havia avisado a diversos interlocutores que aquela seria uma semana cheia e não poderia atender a nenhuma demanda extra.
Não era para menos. Naquela terça-feira, uma delegação de pelo menos 17 americanos apareceu na capital paranaense para conversar com membros do MPF e advogados de empresários que estavam sob investigação no Brasil. Entre eles estavam procuradores americanos ligados ao Departamento de Justiça (DOJ, na sigla em inglês) e agentes do FBI, o serviço de investigações subordinado a ele. Todas as tratativas ocorreram na sede do MPF em Curitiba. Em quatro dias intensos de trabalho, receberam explicações detalhadas sobre delatores como Alberto Youssef e Nestor Cerveró e mantiveram reuniões com advogados de 16 delatores que haviam assinado acordos entre o final de 2014 e meados de 2015 em troca de prisão domiciliar, incluindo doleiros e ex-diretores da Petrobras.
Mas nem tudo foram flores para a equipe de Deltan Dallagnol. No final do dia 6 de outubro, às 23h16, ele foi chamado ao Telegram pelo diretor da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da Procuradoria-Geral da República (PGR), Vladimir Aras: “Delta, MSG DO MJ”.
A mensagem era grave. O Ministério da Justiça acabara de tomar conhecimento da visita dos americanos pelo Itamaraty – quando eles já estavam em Curitiba.
Segundo um acordo bilateral, atos de colaboração em matéria judicial entre Brasil e Estados Unidos – tais como pedir evidências como registros bancários, realizar buscas e apreensões, entrevistar suspeitos ou réus e pedir extradições – normalmente são feitos por meio de um pedido formal de colaboração conhecido como MLAT, que estipula que o Ministério da Justiça deve ser o ponto de contato com o Departamento de Justiça americano. O procedimento é estabelecido pelo Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, tratado bilateral assinado em 1997. No seu segundo artigo, ele afirma: “Para a República Federativa do Brasil, a Autoridade Central será o Ministério da Justiça. No caso dos Estados Unidos da América, a Autoridade Central será o Procurador-Geral ou pessoa por ele designada”
Naquela época, o ministério era chefiado pelo ministro José Eduardo Cardozo, sob a presidência de Dilma Rousseff (PT).
A mediação é feita pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça, o DRCI, então chefiado pelo delegado da Polícia Federal (PF) Ricardo Saadi. Era dele a interpelação que dizia que o governo não fora informado da visita dos procuradores e agentes americanos. No final, o encontro ocorreu à revelia do Executivo, em tratativas diretas entre os americanos e os procuradores de Curitiba.
O email enviado por Saadi dizia o seguinte: “Fomos informados hoje pelo Ministério de Relações Exteriores (MRE) sobre possível vinda de autoridades americanas para o Brasil para conversar com autoridades brasileiras e/ou realizar investigações no âmbito da Operação Lava-Jato. Considerando que, até a presente data, este DRCI não tinha qualquer conhecimento dessa possibilidade, pergunto: 1. O MPF tem conhecimento sobre eventual vinda de autoridades norte-americanas para o Brasil para conversar com autoridades brasileiras e/ou para praticar atos de investigação? 2. Em caso positivo, qual o período que ficariam em solo nacional? 3. Foi feito algum contato oficial nesse sentido? 4. Quais seriam as atividades desenvolvidas pelos norte-americanos em solo nacional? 5. O MPF teria nome/função das autoridades americanas que viriam? 6. Outras informações que entender relevantes”.
O recado foi compartilhado no chat “FTS-MPF”, onde membros da Lava Jato coordenavam ações com outros procuradores.
Especialistas ouvidos pela Pública e The Intercept Brasil afirmam que quaisquer diligências – atos de investigação que vão gerar um processo e provas criminais – em solo nacional teriam que ser oficializadas por meio de um MLAT. Procurado pela reportagem, procurador Vladimir Aras respondeu, por nota, que “as reuniões prévias e o intercâmbio de informações no curso da investigação compreendem a etapa chamada ‘pré-MLAT’. O MP e a Polícia não estão obrigados a revelar ou a reportar esses contatos a qualquer autoridade do Poder Executivo”.
Mas os diálogos demonstram que, como a cooperação internacional não é regulamentada por lei nacional que estabeleça procedimentos padrões, os membros da Lava Jato exploraram zonas cinzentas que permitiram aos americanos avançar suas investigações, escondendo esse fato do governo federal – em especial, durante a época em que Dilma Rousseff ainda era presidente. Os contatos geraram questionamentos dentro da PGR e são ainda mais sensíveis por terem como alvo a empresa de economia mista Petrobras.
Em um chat de 13 de fevereiro de 2015, Deltan Dallagnol demonstra desconfiança em relação ao DRCI – e ao governo Dilma.
Questionado por Vladimir Aras sobre se estaria “tudo tranquilo” com o delegado federal Isalino Antonio Giacomet Junior, que era assessor do DRCI, Dallagnol responde: “Tranquilo, obrigado, embora eu não goste da ideia do executivo olhando nossos pedidos e sabendo o que há. Ainda bem que é o Saadi e não o Tuminha lá”, diz, referindo-se ao ex-delegado Romeu Tuma Júnior.
Em setembro de 2019, a força-tarefa da Lava-Jato afirmou ao site The Intercept Brasil e ao UOL que “diversas autoridades estrangeiras de variados países vieram ao Brasil para a realização de diligências investigatórias, algumas ostensivas, outras sigilosas, conforme interesse dessas autoridades. Sendo um caso ou outro, todas as missões de autoridades estrangeiras no País são precedidas de pedido formal de cooperação e de sua autorização”. A primeira visita americana a Curitiba, porém, ocorreu sem nem mesmo o conhecimento do MJ. Durante quatro dias, os americanos foram apresentados a advogados de delatores e já começaram negociações de colaboração com a Justiça dos EUA
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