Via Carta Capital por Thais Reis Oliveira - Após cinco anos e uma negociação marcada por idas e vindas, a Volkswagen admitiu ao Ministério Público a cumplicidade com a ditadura brasileira
Volkswagen trava negociações para não admitir conluio com a ditadura
Em um acordo extrajudicial, firmado na quarta-feira 23, a empresa se comprometeu a desembolsar um total de 36,3 milhões de reais em reparações à sociedade e a ex-funcionários da empresa presos, perseguidos ou torturados durante o regime militar.
Documentos revelados pela Comissão da Verdade indicam que a direção da Volks delatou, capturou e permitiu a prisão de operários considerados subversivos
Os próprios seguranças atuavam como espiões, sob a batuta do coronel Adhemar Rudge, um militar reformado que se tornou chefe de departamento
Também foram produzidos relatórios do perito brasileiro Guaracy Mingardi e do historiador alemão Christopher Kopper, este último contratado pela montadora.
Lúcio Bellentani: levado ao Dops em 72, passou mais de um ano preso.
Um deles era o ferramenteiro Antônio Torini. Em agosto de 1972, ele foi detido dentro da sede da empresa e levado ao Dops. Naquela ocasião, passou 49 dias preso. Depois, julgado nas instâncias superiores, enfrentou mais um ano de detenção. A mulher, Livonete, ficou sozinha com os dois filhos. A mais nova, com dois anos à época da primeira prisão do pai, sofria com complicações que só anos mais tarde seriam identificadas como síndrome de Down.
Libertado, Torini figurou nas ‘listas sujas’ que a Volkswagen trocava com empregadores — e condenavam os fichados ao desemprego. Morreu em 1998, sem receber um tostão. Aos 79 anos, Livonete Torini vive sozinha com a filha, hoje com 50 anos. Ambas sobrevivem com uma pensão de um salário mínimo.
“Sofri muito junto com ele, e meus filhos também. Estou desde os anos 80 nessa luta”, disse ela a CartaCapital, durante em encontro comemorativo na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (SP).
Emblemático é o do ferramenteiro Lúcio Bellentani. Também agosto de 1972, pouco antes de recomeçar o turno de trabalho, Bellentani foi algemado e agredido por dois seguranças, sob a supervisão de um policial do Dops. Bellentani bateu cartão na entrada, mas não na saída. De lá foi levado direto à sede do Dops. E passou um ano e meio atrás das grades. Bellentani morreu no ano passado, aos 74 anos. O acordo simbólico foi assinado por seu neto de dez anos.
O pagamento foi firmado em caráter de doação à Associação Heinrich Plagge, que reúne 60 trabalhadores e familiares.
Um total de 19,5 milhões de reais serão destinados a iniciativas de promoção de direitos humanos e difusos. Desse montante, 6 milhões irão para o Memorial da Luta pela Justiça, dedicado à memória de advogados e presos políticos que resistiram à repressão e ao autoritarismo do regime. A sede, ainda em construção, fica na antiga Auditoria Militar em São Paulo.
Às vésperas da assinatura do acordo, o grupo de trabalho que investigou o caso na Comissão da Verdade divulgou uma nota crítica ao trato. De forma geral, apontam que o acordo, embora histórico, poderia ter avançado mais. Eis a maior controvérsia: Inicialmente, propunha-se a inauguração de lugar de memória das lutas dos trabalhadores, em local público de ao menos 500 metros quadrados. Já haviam avançado em tratativas com a Prefeitura de São Paulo para que se ocupassem a Galeria Prestes Maia, junto à Praça do Patriarca e ao Vale do Anhangabaú, mesmo local previsto para o Museu da Cidadania e dos Direitos Humanos. Conforme o acordo, porém, o lugar terá apenas 50 metros quadrados. “Nos deixaram trovando à beira da estrada. Nada pessoal, mas vai atrapalhar a descoberta de novos casos”, lamenta Sebastião Neto, coordenador do Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas.
Os envolvidos no acordo ponderam. “Havia inviabilidade jurídica e técnica para atender esse critério. Era interessante, mas não era possível, sob pena de suspender as negociações. Quantas vezes a empresa quis sair da negociação?”, argumenta Raimundo Simão, advogados dos trabalhadores.
“Em dois momentos, a Volkswagen desistiu do acordo. Foi a intervenção do sindicato e do Comitê Mundial dos Trabalhadores que conseguiu reverter a decisão”, diz Wagner Santana, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, durante o evento com os ex-funcionários da Volks. “Nunca será o merecido, mas é o possível.”
Nos bastidores, avalia-se que a questão é, na verdade, política. O pecado original da montadora fundada nos anos 30 sob a égide do nazismo ainda não foi totalmente expiado. Só em 1998 a Volkswagen aceitou pagar indenizações pelo uso de mão de obra judia escrava durante a Segunda Guerra. Também não se recuperou do escândalo dos gases de efeitos tóxicos, quando veio a público que manipulava medidores de poluição de seus veículos – no início do mês, aliás, o MPF brasileiro pediu à empresa indenização de 30 milhões por esse caso. Em 2017, em nova controvérsia, foi acusada de testar os efeitos do óleo diesel em macacos e humanos.
A filial da Volkswagen foi traída pela burocracia alemã, mas não era a única empresa a financiar a repressão no Brasil. Cerca de 1,5 milhão de reais serão destinados à Universidade Federal de São Paulo para financiar novas pesquisas sobre a colaboração de empresas com a ditadura. A universidade receberá ainda mais 2,5 milhões para a identificação das ossadas de presos políticos da vala clandestina de Perus.
Os 9 milhões restantes serão divididos entre fundos estadual e federal de Defesa e Reparação de Direitos Difusos. A Volks também deve publicar em jornais de grande circulação uma declaração pública a respeito do caso.
Os órgãos superiores do Ministério Público em Brasília precisam ainda homologar o acordo. Procurada por CartaCapital para comentar o caso, a Volkswagen não retornou até a publicação da reportagem.
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