Via Carta Maio, por Fábio Castro (UFPa)
As eleições deste ano, em Belém (PA) e Recife (PE), constroem dois cenários potenciais para as eleições de 2022. Na primeira cidade as esquerdas uniram-se numa batalha épica contra o candidato fascista. Na segunda, as esquerdas trucidam-se na disputa. Tratam-se de construções políticas diferentes, com contextos próprios, mas que, mesmo assim, sugerem fórmulas e conflitos que desenham, ou ensaiam, possibilidades para a cena nacional de 2022.
Em Belém, a adesão do PT à candidatura do PSOL, embora questionada fortemente no diretório central do partido no debate que precedeu o acordo, recebeu uma adesão massiva da militância e dos simpatizantes do PT. Edmilson Rodrigues foi prefeito da cidade, pelo PT, entre 1997 e 2004 e, desde que entrou no PSOL, nenhum candidato do seu antigo partido obteve uma votação sequer razoável na disputa pela prefeitura da cidade.
No Recife, a disputa se dá no próprio campo democrático e produziu dois efeitos políticos importantes: aproximou o centro da direita e renovou o sentimento de ódio social, dando sobrevida aos motes do Golpe de 2016 e ao próprio bolsonarismo.
Em Belém, a costura PSOL-PT recebeu imediato apoio do PCdoB, do PDT, da Rede e da UP e, depois do 1° turno, também do PSB, do PV e do Cidadania. Ainda mais significativo tem sido o envolvimento da população da cidade no processo, com milhares de manifestações espontâneas de apoio, notadamente de ícones locais e nacionais, de Gretchen (hoje residente na cidade) e Fafá de Belém a Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda.
O opositor de Edmilson Rodrigues, o neófito delegado Eguchi, candidato do Patriota, tem apoio de Jair Bolsonaro, do atual prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho e do partido deste, o PSDB. O MDB do governador do Pará, Helder Barbalho, declarou neutro.
A tentativa de replicação dos métodos obscurantistas da direita brasileira pela campanha do candidato bolsonarista – fake-news, robôs em redes sociais, manipulação de informações e o velho populismo – tem seu efeito, é claro, mas encontrou um rival de peso: um elemento de ponderabilidade, de racionalidade, de equilíbrio na construção de uma candidatura centrada em propostas e na afirmação de compromissos com o interesse público, na chapa PSOL-PT.
Em Belém, assim, a imagem central da disputa não está entre esquerda e direita, mas em dois planos análogos: num nível, a disputa entre a defesa do estado democrático de direito e a barbárie da extrema-direita; e, em outro nível, a disputa entre a apresentação de proposições políticas razoáveis, respeitosas e decentes e a truculência de propostas inconsequentes.
Ainda que se trate de uma disputa apertada e de resultado incerto, Belém já deu uma lição preciosa para 2022: numa sociedade ideologicamente polarizada e fortemente conservadora a construção política do razoável e do compromisso com o interesse público, associadas a uma crítica contundente da barbárie fascista-bolsonarista é um lugar político que pode ser ocupado com vantagem pelo campo progressista, com forte impacto sobre os espectros conservadores.
No Recife, apesar do aparente comprometimento dos dois grupos em disputa com o campo progressista, é inegável que uma das bases da campanha do PSB é a investida no antipetismo, tônica que sugere que esse mote continua tendo eficácia, inclusive no Nordeste.
A Justiça Eleitoral infringiu uma derrota ao PSB dia 25/11, determinando a retirada de circulação de uma peça que afirmava que Marília Arraes era contra o programa ProUni municipal e contra a Bíblia. A estratégia do PSB é avançar na conquista do campo de direita e centro-direita, prosseguindo as práticas de despolitização e, com isso, indiretamente, dando sobrevida ao fascismo.
Nos últimos dias dissidências de PDT e PCdoB, partidos que apoiam João Campos (PSB), aderiram à candidatura de Marília Arraes (PT). A mais significativa delas é do ex-prefeito do Recife, João Paulo, do PCdoB. Outra dissidência importante é a do deputado federal Túlio Gadêlha (PDT-PE), que vem sofrendo forte perseguição em seu partido depois de ter manifestado apoio à candidata. Por outro lado, a ação de Ciro Gomes (PDT), pré-candidato à sucessão de Bolsonaro, de apoio a João Campos, assinala o ensaio de um movimento estratégico para o pleito de 2022. Ciro Gomes gravou programas de televisão para o candidato e tem articulado fortemente a aliança PDT-PSB. Importante assinalar, nesse contexto, ainda, o apoio oportunista de Flávio Dino, governador do Maranhão, à candidatura de João Campos.
O processo eleitoral do Recife demonstra um sequestro do campo democrático pela política torpe e sórdida do denuncismo e da mentira. Nesse jogo, matizam-se esforços para conquistar o eleitorado evangélico, o eleitorado bolsonarista e as classes médias locais. A campanha de Marília Arraes denuncia que o adversário segue distribuindo material impresso associando-a aos temas caros do fetiche político evangélico e conservador, como a legalização das drogas, do aborto e à ideologia de gênero.
As batalhas de Belém e Recife, como disse, projetam 2022 e merecem ser analisadas.
Na batalha de Belém vemos união das esquerdas, politização, explicitação de projeto, construção de compromissos e denúncia do fascismo bolsonarista. Talvez isso não seja suficiente para vencer a barbárie, mas traz a política para o seu pretenso lugar e traz as esquerdas para o seu suposto lugar na política.
Na batalha de Recife vemos desunião das esquerdas, discurso anti-política, oportunismo eleitoral e descolamento da campanha do debate de propostas. Efetivamente, desenha-se no Recife um cenário que pode se repetir, a nível nacional, daqui a dois anos, com um bloco que se apresenta como progressista formado pelo PSB e PDT – talvez com apoio do PCdoB –, mas com práticas bolsonaristas, e outro formado pelo PT e PSOL.
É muito difícil considerar PDT e PSB como partidos progressistas. São partidos com importantes lideranças progressistas, mas transitam mais confortavelmente no campo conservador. O PCdoB vem dando mostras de um pragmatismo que, em geral, lhe é uma novidade, e que se assenta no projeto “Flávio Dino” – o governador do Maranhão que, à despeito de sua excelente gestão, demonstra pouca preocupação programática quando se trata de costurar alianças verdadeiramente democráticas.
Por sua vez, Belém mostra que um outro cenário, centrado na união das esquerdas, também é possível. Num processo eleitoral que parece estar sendo marcado por testes de limites e balões de ensaio, precisamos acompanhar essas estratégias e seus resultados.
Fábio Fonseca de Castro é Professor da UFPA
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