Via site JOTA por Humberto Vale
Representantes dos fiéis argumentam que a liberdade religiosa é um direito fundamental garantido pela Constituição
Estão em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF) duas ações (RE 979.742 e RE 1.212.272) que podem redefinir os limites entre a liberdade religiosa e o direito à saúde. O foco do debate é o direito de autodeterminação das Testemunhas de Jeová de recusarem transfusões de sangue por motivos religiosos e se essa recusa justifica o custeio de procedimentos não oferecidos pelo SUS. As Testemunhas de Jeová seguem uma doutrina que proíbe a transfusão de sangue e são orientadas a não doarem e nem armazenarem o sangue para esse fim. Os fiéis da religião consideram que "o sangue representa a vida", portanto, devem evitar "tomar sangue por qualquer via", em obediência e respeito a Deus, como "dador da vida".
Em sessão plenária no dia 8 de agosto, representantes das Testemunhas de Jeová, entidades jurídicas e as defesas sustentaram que a autonomia do paciente para recusar o procedimento deve ser respeitada, argumentando que a liberdade religiosa é um direito fundamental garantido pela Constituição. Esta primeira sessão contou somente com as sustentações orais, ainda não há previsão para que o julgamento conjunto retorne à pauta do Supremo.
Entenda o caso
Um dos recursos em questão é o RE 979.742, em que a União recorreu de decisão que a condenou, juntamente com o estado do Amazonas e o município de Manaus, a custear uma cirurgia de artroplastia total em outro estado, em razão de o procedimento que não utiliza transfusão de sangue não ser ofertado no Amazonas.
O relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu a repercussão geral do caso em 2017, no Tema 952, e enfatizou a importância do respeito à autodeterminação e às crenças das Testemunhas de Jeová. No entanto, alertou que o repasse de recursos públicos, em um contexto de escassez de verbas, pode comprometer outros princípios constitucionais. O segundo RE em análise é o 1.212.272, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, que envolve uma Testemunha de Jeová que teve uma cirurgia de substituição de válvula aórtica cancelada após se negar a assinar termo de consentimento autorizando a transfusão de sangue.
O recurso também teve repercussão geral reconhecida, sob o Tema 1069, em 2019. Na ocasião, Mendes avaliou que o alcance da "liberdade religiosa não deve ser medido pela força numérica, nem pela importância social de determinada associação religiosa. A liberdade de credo deve ser assegurada de modo igual a todos". Para o ministro, a recusa de procedimentos é uma "questão diretamente vinculada ao direito fundamental à liberdade de consciência e de crença, além de outros princípios e garantias constitucionais".
A advogada da paciente, Eliza Gomes, Morais, argumentou que a recusa é uma escolha “legítima” do ponto de vista médico-científico. “Os pacientes não querem mais ser tratados como crianças nos seus tratamentos médicos, querem ser tratados como adultos capazes”, disse.
O que disseram os amigos da corte
Ana Carla Harmatiuk Matos, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil) avaliou que a relação entre médicos e pacientes deve superar o "paradigma do paternalismo médico", para que os profissionais respeitem as decisões autônomas dos pacientes, com exceção para situações que apresentam riscos para terceiros, como no caso das vacinas. Matos ponderou que "não cabe às instituições de saúde" e "nem mesmo ao Estado "exigir que os pacientes "quebrem suas convicções" para ter acesso aos procedimentos. Representando a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), a advogada e ex-ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Maria Claudia Bucchianeri, caracterizou as Testemunhas de Jeová como um grupo religioso "minoritário", que foi "historicamente perseguido". Ela argumentou que os fiéis "não querem ter que fazer a escolha trágica entre a sua convicção religiosa e o acesso ao sistema público de saúde".
Já o defensor público Péricles Batista da Silva, da Defensoria Pública de Minas Gerais, defendeu a implementação de um protocolo para o atendimento de religiosos que recusam transfusões de sangue, citando o Program Patient Blood Management (PBM), que oferece alternativas terapêuticas para casos em que os tratamentos convencionais são inviáveis
De acordo com o defensor, o PBM "traz opções terapêuticas que tornam desnecessária a discussão sobre a autonomia, porque, na verdade, a gente só discute a autonomia se houver conflito, se não há conflito, não há porque se falar de autonomia". Silva acrescentou que o modelo foi implementando com sucesso no estado do Ceará.
Por outro lado, Henderson Fürst, da Sociedade Brasileira de Bioética, reconheceu a importância de respeitar a autonomia do paciente, mas considerou que ainda há insegurança jurídica para os profissionais de saúde nesses casos. Ele defende autonomia do paciente deve ser respeitada, levando em consideração a democratização do acesso à saúde, para assegurar que decisões individuais não comprometerão o acesso igualitário aos serviços.
Para Furst, a Constituição "estabelece um paradigma muito claro de democracia sanitária, uma democracia que é pautada pela redução da simetria de acesso a tratamentos" e "pela participação social e o controle social, para que a sociedade possa dizer o que entende por saúde".
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