Castro, o tratamento dado aos sistemas agroalimentares nos espaços de governança global ainda é marginal — sobretudo se comparado à centralidade da transição energética.
Cátedra J. Castro/USP
OPINIÃO
A menos de cinco meses da COP30, Bonn aponta riscos e oportunidades para a agenda de sistemas agroalimentares
Fernanda Marrocos-Leite, Fabrício Muriana e Renata Potenza 11 de Julho de 2025 (atualizado em 11 de Julho de 2025)
Conforme destacado no policy brief "COP30 no Brasil – Por uma transição justa e sustentável do sistema agroalimentar", publicado pela Cátedra Josué de Castro, o tratamento dado aos sistemas agroalimentares nos espaços de governança global ainda é marginal — sobretudo se comparado à centralidade da transição energética
TEMAS
Mudanças climáticas
Sistemas alimentares
Faltando menos de cinco meses para a COP30 (30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), marcada para novembro em Belém do Pará, a Pré-COP (pré-Conferência do Clima) realizada em Bonn, na Alemanha, revelou o tom de urgência, complexidade e importância que deve marcar as negociações climáticas deste ano. Embora menos visível ao grande público, Bonn é uma etapa estratégica: é lá que se definem as bases políticas e técnicas da próxima conferência. Seu papel é decisivo — os avanços (ou impasses) registrados nesse encontro técnico influenciam diretamente o desfecho das decisões em Belém. Mais do que uma preparação formal, a Pré-COP serve como um termômetro da disposição política internacional para enfrentar a crise climática. Ela antecipa temas centrais e evidencia os pontos de tensão que exigirão liderança diplomática, clareza de propostas e articulação efetiva para que a COP30 vá além do simbolismo amazônico e se afirme como um marco concreto na implementação do Acordo de Paris.
Conforme destacado no policy brief “COP30 no Brasil – Por uma transição justa e sustentável do sistema agroalimentar”, publicado pela Cátedra Josué de Castro, o tratamento dado aos sistemas agroalimentares nos espaços de governança global ainda é marginal — sobretudo se comparado à centralidade da transição energética. Ainda que a descarbonização da matriz energética seja imprescindível, ela não será suficiente. Como sintetizou Arilson Favareto, professor titular da Cátedra, em entrevista ao Nexo Políticas Públicas “Ainda que tivéssemos uma transição energética, a falta de uma mudança nas formas como se produz e se consome alimentos já seria, por si, o suficiente para inviabilizar o objetivo de restringir o aquecimento global a 1,5°C, como preconiza o Acordo de Paris”. Isso porque o sistema agroalimentar global responde por cerca de um terço das emissões mundiais de gases de efeito estufa, sendo que no Brasil, esse número chega a quase três quartos das emissões brutas totais (quando considerados seus efeitos diretos e indiretos).
De maneira semelhante ao que se observa em outros espaços de governança global, o debate sobre sistemas agroalimentares nos eventos paralelos (side-events) em Bonn foi mais tímido do que o esperado e concentrou-se em dois principais temas: De um lado, enfatizou-se a importância de sistemas produtivos que valorizem o agricultor e ampliem o acesso a alimentos saudáveis e sustentáveis via agricultura familiar e/ou modelos agroecológicos; de outro, destacou-se a necessidade de substituição de produtos de origem animal, especialmente as carnes, por proteínas alternativas ou produtos à base de plantas (em sua maioria, ultraprocessados). Ou seja, o primeiro caso priorizou ações de adaptação, e o segundo, de mitigação.
Já na agenda de negociação, ocorreu o primeiro workshop do Grupo de Trabalho Sharm-el-Sheikh para a implementação da ação climática na agricultura, nos sistemas alimentares e na segurança alimentar. Porém, poucos países apresentaram abordagens mais sistêmicas e holísticas capazes de superar a tríplice monotonia do sistema agroalimentar global, bem como os impactos negativos que tal sistema impõem sobre os recursos naturais, a biodiversidade e a saúde humana. A maioria destacou ações voltadas apenas ao setor agropecuário, e o debate sobre outros aspectos – como subsídios agrícolas, reforma regulatória, ultraprocessados e cooperação multissetorial – foi praticamente ausente. Embora leve também o nome de grupo de trabalho de agricultura e segurança alimentar, há esforço enorme dos países para circunscrever o debate somente à agricultura, impedindo o avanço dos demais setores do sistema agroalimentar com igual protagonismo.
O fato de a presidência brasileira da COP30 ter incluído a transição dos sistemas agroalimentares entre os eixos prioritários de sua Agenda de Ação vai além de um sinal encorajador — trata-se de uma oportunidade concreta de abrir, no coração das negociações climáticas, o debate sobre como e para que transitar os modelos vigentes
O Brasil teve a oportunidade de apresentar suas contribuições institucionais nesse espaço. Contudo, a participação do governo brasileiro centrou-se em uma visão pouco ambiciosa das metas climáticas do setor, focando apenas em ações específicas na agricultura. Em contrapartida, a intervenção conduzida pelo Itamaraty, fora do workshop, foi bem recebida e, de certa forma, inédita para o país, ao enfatizar a vulnerabilidade dos agricultores familiares, mulheres e povos indígenas, além da necessidade de investir em ações de adaptação e em formas de produção mais resilientes e socialmente justas, como modelos produtivos agroecológicos.
Nesse cenário, o fato de a presidência brasileira da COP30 ter incluído a transição dos sistemas agroalimentares entre os eixos prioritários de sua Agenda de Ação vai além de um sinal encorajador — trata-se de uma oportunidade concreta de abrir, no coração das negociações climáticas, o debate sobre como e para que transitar os modelos vigentes. Ao trazer os sistemas agroalimentares para o centro da agenda, cria-se espaço para discutir não apenas o que precisa mudar, mas qual o sentido dessas mudanças: será suficiente adicionar soluções tecnológicas ao modelo atual, ou será necessário transformá-lo estruturalmente?
Como alerta o policy brief da Cátedra Josué de Castro, há o risco de essa agenda ser capturada por soluções do tipo “e” — que apenas agregam novas tecnologias ao sistema já insustentável — em vez de soluções do tipo “ou”, que confrontam e substituem práticas convencionais por alternativas ambientalmente mais justas e eficazes. Por isso, é fundamental que a transição proposta tenha uma estratégia clara, voltada à superação da tríplice monotonia que marca o sistema agroalimentar atual: das lavouras de grãos, das criações animais e das dietas. Só assim a COP30 poderá deixar um legado real e transformador no enfrentamento da crise climática.
Embora outros avanços tenham sido anunciados durante a Pré-COP, como o compromisso de ofertar ao menos 30% dos alimentos provenientes da agricultura familiar, da agroecologia e de povos e comunidades tradicionais da região durante a COP30, ainda estamos longe de alcançar a ambição necessária para transformar esse setor de forma estrutural. Os passos dados até aqui indicam uma direção, mas ainda não configuram uma trajetória robusta rumo à transição justa e sustentável que o momento exige. A Presidência da COP 30 tem reiterado em falas públicas a necessidade da implementação, mas a discussão sobre agricultura pouco avançou nesse sentido.
Conforme destacou o Secretário Executivo da ONU para Mudanças Climáticas no encerramento da conferência em Bonn: “Precisamos ir mais longe, mais rápido e com mais justiça”. A frase capturou não apenas o espírito da reunião em Bonn, mas também a encruzilhada em que nos encontramos. A urgência não é apenas climática — é também política e moral. Precisamos avançar, com coragem, e logo!
Fernanda Marrocos-Leite é pesquisadora da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da FSP/USP e do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da FSP/USP.
Fabrício Muriana é diretor e co-fundador do Instituto Regenera, que co-organiza junto ao Instituto Comida do Amanhã, a Iniciativa da Alimentação da COP 30. É membro do Leader’s Cohort da Global Alliance for the Future of Food e conduz os encontros de mercados da Agroecology Coalition.
Renata Potenza é coordenadora sênior em ciência do clima e especialista em políticas climáticas no IMAFLORA (Instituto de Manejo e Certificação Agrícola e Florestal).
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