O IBGE publicou, em setembro, os dados sobre o período abril-junho deste ano, detectando um crescimento de 1,9% no PIB ante o 1o trimestre e o retorno de uma parte dos empregos perdidos. Foi suficiente para que se orquestrasse o coro dos empiristas e deslumbrados. As autoridades federais, que emitiram opiniões pueris e até absurdas a partir de setembro de 2008, segundo as quais o País estaria imune a uma crise considerada como doença alheia, hoje se jactam do que julgam ser a façanha de sua exemplar política antirrecessiva. Menos, menos ...
Para além do vício pragmático e das pirotecnias midiáticas de costume, potencializados pela disputa presidencial de 2010, que já começou, os analistas e governantes se deparam com dificuldades reais quando tentam fazer prognósticos econômicos sobre o fundo do poço, o tempo necessário para emergir-se e os efeitos a serem esperados. Isso porque, como assinalaram as Teses sobre Conjuntura e Tática (Cap. I, As dimensões cíclicas da crise, tese 20), a crise contemporânea tem múltiplas esferas, que são dinâmicas, interrelacionadas, contraditórias e hoje confluentes entre si:
“a) os fundamentos essenciais, com seus limites absolutos localizados no modo de produção e na reprodução do capital, expressos em forma de impasse universal;
b) as ondas longas – a fase depressiva da última tem mais de três décadas –, com suas características histórico-sociais e limites relativos;
c) os pulsos conjunturais, com suas conformações e características singulares, mais ou menos abrangentes ou persistentes em cada região, país ou momento.”
Ora, os políticos e economistas da ordem, mesmo aqueles com pretensões progressistas e humanitárias – como os social-liberais –, ignoram completamente os fundamentos essenciais (item a) e as ondas longas (item b). Não enxergam a crítica da economia profunda, que embasa a teoria dos ciclos sob o jugo capitalista e que descortina tanto as contradições quanto os limites absolutos da sociabilidade burguesa desde sempre e ainda mais na contemporaneidade. Também estão cegos diante da fase B ou depressiva da onda longa, conhecida como 4º Kondratiev, iniciada em 1972 mundialmente e no Brasil, que persiste e lastreia os ciclos conjunturais e as inúmeras recidivas ocorridos desde então, incluindo seus limites relativos de maior expressão.
O que chamam de crise – grosso modo – é apenas a constatação dos aspectos superficiais e mais notórios do ciclo conjuntural em curso, horizonte máximo de sua miséria teórica e de suas angústias práticas, articuladas em torno do binômio lucro-governabilidade. A conclusão desses profetas do senso comum é que a crise, como um todo, já foi superada. Para Luiz Inácio da Silva a “crise está vencida no Brasil”. Um comentarista da grande imprensa chegou a ombrear a economia brasileira com a chinesa – que teve um aumento no PIB de 2% no 3º trimestre –, decretando uma espécie de “empate técnico”. Existe até quem passou a elogiar o titular do Planalto, aludindo à sua “premonitória” imagem de “marolinha”, a exemplo de articulistas brasileiros e jornais considerados austeros do exterior.
Viseira? Desejo? Ambos? É obvio que o pulso conjuntural no Brasil será ultrapassado mais dia menos dia, com ou sem repiques e recidivas. O comportamento cíclico, como comprovou Marx, é próprio do metabolismo capitalista e sua recuperação é tão certa como dois e dois são quatro. Não menos garantido é que haverá novos pulsos enquanto existir a formação econômico-social burguesa. Também é claro que as políticas federais – o aumento persistente do salário mínimo e os projetos de assistência social, bem como a intervenção do Estado na forma de renúncia fiscal, financiamentos e aumento de gastos públicos – destoantes pontualmente dos dogmas e diretrizes neoliberais prevalecentes em geral ajudaram a evitar o pior em plena débâcle, possibilitaram o aumento do consumo familiar em 2,1% no 2o trimestre e seguraram o mercado nos últimos meses. Diga-se de passagem: bastou uma pequena oscilação nas condições objetivas para que setores mais conscientes e mobilizados do proletariado, até agora carregando o maior peso da crise, se sentissem motivados e capazes de protagonizar um novo e corajoso ciclo grevista.
Todavia, mesmo a retomada momentânea tem mais complexidades do que, lembrando Shakespeare, “pode conceber” “a vã filosofia” dos ingênuos de sempre e dos vivaldinos de ocasião. Já ficou constatado, pela mera observação da linha desenhada pelos dados empíricos nos eixos do sistema cartesiano bidimensional, que o ciclo conjuntural no Brasil não se assemelhou à letra “V”. Em vez de recuperar-se a partir de imediata ascendência após tocar o fundo do poço, constituindo um vértice pontiagudo, manteve-se em baixa, assumindo uma forma alongada semelhante àquela da parte inferior do “U”. Assim, o fundo espichou-se de janeiro (com suave descida) a junho (com suave subida), isto é, por todo o 1º semestre deste ano.
Se a referência for apenas o PIB, o crescimento de 1,9% em abril-junho superou o recuo de 0,85% em janeiro-março, que foi o termo comparativo para o cálculo, compondo a curvatura típica da mencionada base. Entretanto, a queda de 3,6 no 4o trimestre de 2008 ainda está por ser compensada: a onda conjuntural ainda se situa em sua fase côncava. Eis uma das diferenças abissais – há outras – entre China e Brasil: naquele país oriental ocorreu mais um crescimento de 2% sobre uma base forte e ascendente; nesta nação sul-americana, houve uma recuperação de 1,9% sobre uma base fraca e declinante.
Se o termo de comparação for o desempenho em
Logo, o conceito corrente de “recessão técnica”, que referencia as análises dos especialistas oficiais, é insuficiente para entender-se a lógica, a dinâmica e as conseqüências sociais dos processos econômicos, mesmo em se tratando de ciclos de curto prazo, especialmente num país como o Brasil, em que nas últimas décadas o desenvolvimento foi deveras insuficiente – compondo um déficit acumulado de atraso, problemas sociais gravíssimos e pobreza crônica – e em que o desemprego só recuará significativamente se o PIB crescer a uma taxa média sustentada acima de 4,5%, como a experiência vem comprovando.
Mesmo que o movimento de saída do pulso conjuntural – ou a aproximação de uma nova fase convexa – se mantenha firme no 2o semestre, como esperam os responsáveis pelo BNDES, BC e Ministério da Fazenda e Presidência da República, voltando aos níveis de setembro de
- localização em ramos particulares;
- oscilações em parte sazonais, como nos fins de ano;
- índices em geral mais baixos do que os de 2008;
- condições objetivas internacionais adversas;
- comércio exterior inibido;
- mercado interno desequilibrado, sustentado basicamente pelos segmentos de baixa renda e pela venda de bens de consumo financiados;
- produção e importação de meios de produção paralisadas;
- dependência exagerada de estímulos públicos providos por fonte estatal de capacidade limitada e motivação datada;
- sangria constante dos recursos públicos por meio do endividamento a juros altos;
- fonte de bens industriais localizada, basicamente, nos estoques acumulados e na capacidade já instalada;
- taxa muito baixa de formação bruta de capital fixo ou investimento, que caiu 17% no 2o trimestre ante igual período de 2008;
- política econômica eclética, sem uma estratégia clara.
Diante desse quadro, o futuro continua nebuloso. Trata-se de má notícia para os profetas que vaticinam para breve um novo Mar de Almirante! Que futuro poderia ter o diagnóstico desses candides nada voltaireanos, que caíram do céu em setembro de 2008 para as profundas do inferno em janeiro de 2009 e agora se imaginam novamente sentados ao lado do Senhor sem ao menos passar pelo purgatório? Tão somente a repetição inconsciente e trágica do gesto simbólico, pedagógico e irônico do padre José de Anchieta numa praia do litoral sul capixaba, quando simulava esvaziar os oceanos com um simples dedal.
Belo Horizonte, 20 de setembro de 2009,
Ronald Rocha
Publicado na Tribuna de Debates do II Congresso da RC
Um comentário:
Caro RUI, obrigado pela publicação do artigo de Ronald Rocha.
Daniel Veiga.
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