Imagem da época de militar
recrutado para combater guerrilha em 'Soldados do Araguaia
GUILHERME GENESTRETI
Folha de São Paulo
Histórias sobre as torturas
cometidas pela ditadura militar costumam vir de quem se opôs a elas. O
documentário "Soldados do Araguaia", de Belisário Franca, joga luz
nos sofrimentos infligidos pelo Estado a quem lutou em nome do regime –mais
precisamente, cabos cooptados para desbaratar militantes.
O filme, em cartaz na Mostra de
SP, traz depoimentos contundentes de ex-soldados recrutados entre adolescentes
do sul do Pará, que conheciam as matas onde haviam se embrenhado os
guerrilheiros de inspiração comunista.
Era gente comum, que vivia do
extrativismo da pele de onças e que, de uma hora para a outra, foi surpreendida
por helicópteros. Mais tarde, descobririam, "aquilo não era manobra, era
guerra."
Antes de partir para a ação, os
sujeitos eram sistematicamente humilhados e torturados pelos militares:
forçados a beber sangue coagulado de vaca, comer cobra, suportar a picada de
insetos após terem sido lambuzados de açúcar. Um deles detalha como perdeu
parte dos testículos.
"O terror do Estado não tem
lado, acaba atingindo o próprio Estado", afirma o diretor, que tomou
conhecimento do caso a partir de uma indicação do jornalista paraense Ismael
Machado.
Os depoimentos dos soldados só
vieram à tona após as comissões da Verdade receberem pedidos de atendimento
psiquiátrico de ex-combatentes militares. "Antes, eram só as vítimas
'convencionais'. Depois vieram ex-soldados, que sofreram tanto quanto as outras
vítimas do Estado", afirma o diretor.
"Soldados do Araguaia"
mostra como as torturas foram uma forma de preparar aqueles jovens locais para
o extermínio que seriam obrigados a cometer. "Era uma política praticada
para tornar o soldado submisso a uma luta irrefletida", diz o diretor.
É o momento em que o filme começa
a dar espaço a relatos de guerrilheiros atirados de helicópteros e das cabeças
dos militantes empilhadas em sacos "como cocos".
"A política de amnésia
praticada pelas Forças Armadas fez com que não soubéssemos dessa
história", diz o documentarista, que tem na ideia do silenciamento uma
constante cinematográfica.
Em "Menino 23", seu
documentário anterior, Belisário Franca se debruçava sobre os garotos que, nos
anos 1930, foram escravizados por uma família simpatizante do nazismo no
interior de São Paulo. Também ali havia uma cortina de silêncio a ocultar tudo.
"É sempre um choque como o
Brasil escolhe a negação do que passou. E não há justiça sem memória da
injustiça", afirma o diretor.
Em sua opinião, o fato de o
Brasil ter optado pela via conciliatória é o que provoca a atual onda de gente
pedindo a volta dos militares ao poder.
"Na Argentina e no Chile, a
sociedade civil debateu suas ditaduras. Aqui não foi o suficiente. Esse é mais
um dos silenciamentos que a ditadura foi capaz de produzir."
Veja mais sobre filmes e
diretores na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no especial do
'Guia'.
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