terça-feira, 24 de outubro de 2017

Documentário dá voz a militares torturados pela própria ditadura




Imagem da época de militar recrutado para combater guerrilha em 'Soldados do Araguaia

GUILHERME GENESTRETI

Folha de São Paulo

Histórias sobre as torturas cometidas pela ditadura militar costumam vir de quem se opôs a elas. O documentário "Soldados do Araguaia", de Belisário Franca, joga luz nos sofrimentos infligidos pelo Estado a quem lutou em nome do regime –mais precisamente, cabos cooptados para desbaratar militantes.

O filme, em cartaz na Mostra de SP, traz depoimentos contundentes de ex-soldados recrutados entre adolescentes do sul do Pará, que conheciam as matas onde haviam se embrenhado os guerrilheiros de inspiração comunista.

Era gente comum, que vivia do extrativismo da pele de onças e que, de uma hora para a outra, foi surpreendida por helicópteros. Mais tarde, descobririam, "aquilo não era manobra, era guerra."

Antes de partir para a ação, os sujeitos eram sistematicamente humilhados e torturados pelos militares: forçados a beber sangue coagulado de vaca, comer cobra, suportar a picada de insetos após terem sido lambuzados de açúcar. Um deles detalha como perdeu parte dos testículos.

"O terror do Estado não tem lado, acaba atingindo o próprio Estado", afirma o diretor, que tomou conhecimento do caso a partir de uma indicação do jornalista paraense Ismael Machado.

Os depoimentos dos soldados só vieram à tona após as comissões da Verdade receberem pedidos de atendimento psiquiátrico de ex-combatentes militares. "Antes, eram só as vítimas 'convencionais'. Depois vieram ex-soldados, que sofreram tanto quanto as outras vítimas do Estado", afirma o diretor.

"Soldados do Araguaia" mostra como as torturas foram uma forma de preparar aqueles jovens locais para o extermínio que seriam obrigados a cometer. "Era uma política praticada para tornar o soldado submisso a uma luta irrefletida", diz o diretor.

É o momento em que o filme começa a dar espaço a relatos de guerrilheiros atirados de helicópteros e das cabeças dos militantes empilhadas em sacos "como cocos".

"A política de amnésia praticada pelas Forças Armadas fez com que não soubéssemos dessa história", diz o documentarista, que tem na ideia do silenciamento uma constante cinematográfica.

Em "Menino 23", seu documentário anterior, Belisário Franca se debruçava sobre os garotos que, nos anos 1930, foram escravizados por uma família simpatizante do nazismo no interior de São Paulo. Também ali havia uma cortina de silêncio a ocultar tudo.

"É sempre um choque como o Brasil escolhe a negação do que passou. E não há justiça sem memória da injustiça", afirma o diretor.

Em sua opinião, o fato de o Brasil ter optado pela via conciliatória é o que provoca a atual onda de gente pedindo a volta dos militares ao poder.

"Na Argentina e no Chile, a sociedade civil debateu suas ditaduras. Aqui não foi o suficiente. Esse é mais um dos silenciamentos que a ditadura foi capaz de produzir."

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