terça-feira, 24 de setembro de 2019

Investigamos a violência sexual no Marajó – e não é nada do que a ministra Damares diz: Via Agência Pública

Publicamos nesta tarde (24) uma importante reportagem sobre a violência sexual no Marajó, no Pará, onde meninas são exploradas sexualmente desde os 5 anos de idade em troca de comida.

Em julho deste ano, a ministra Damares Alves sugeriu que a violência seja decorrente da falta de uso de calcinhas e, como solução, propôs a instalação de uma fábrica de calcinhas na região. 

Leia a reportagem abaixo e a entrevista com a juíza Elinay Melo, que atua na região e considera que a fala da ministra culpabiliza a vítima e ignora a miséria e a ausência do Estado. Investigamos a violência sexual no Marajó – e não é nada do que a ministra Damares diz 

Ao lançar o programa “Abrace Marajó”, ministra propôs soluções esdrúxulas, como fazer uma fábrica de calcinhas, para um problema social agravado por falta de políticas públicas

Por Andrea DiP e Julia Dolce

Antes de o barco alcançar a costa de São Sebastião da Boa Vista, é possível ver o templo da igreja evangélica Assembleia de Deus espetado entre as pequenas casinhas que abrigam o comércio local. Quando se pisa em terra firme, as conversas animadas negociando o peixe e o açaí se misturam ao barulho das crianças correndo e das muitas motos que disputam o espaço apertado da passagem com os cachorros e com os que estão chegando ou partindo. A igreja estava fechada, a vida acontece mesmo na beira do rio.

O município de São Sebastião da Boa Vista é conhecido como “A Veneza do Marajó”, por conta dos igarapés que cortam a cidade. Do rio vem a comida, o sustento; sobre o rio se mora; em suas águas se refresca do forte calor; e, sobretudo, o rio é a estrada, a via de acesso – mas só para quem tem barco próprio (e dinheiro para o óleo diesel) ou pode pagar passagem que pode custar mais de R$ 100 para Belém, dependendo da embarcação. Partindo de alguns lugares na zona rural, chega a R$ 350. Há furos de água (quando o rio se estreita) em que só se passa em embarcações menores, o que exige mais dinheiro para o combustível e muito mais horas de viagem. “O rio manda na nossa vida aqui no Marajó”, me diria algumas vezes a irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante – freira que é referência no combate à exploração e à violência sexual de crianças e adolescentes no estado do Pará e coordenadora da Comissão Justiça e Paz da CNBB – nos dias que passamos juntas no arquipélago.

O Marajó tem 14 dos seus 16 municípios na lista dos menores IDHs do país, segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil (com informações dos Censos de 1991, 2000 e 2010). São Sebastião figura entre as piores colocações no ranking com outros municípios do arquipélago, como Afuá, Anajás, Bagre, Breves, Cachoeira do Arari, Chaves, Curralinho, Gurupá, Melgaço, Muaná, Ponta de Pedras, Portel e Santa Cruz do Arari. Apenas os municípios de Salvaterra e Soure, que ficam no chamado “Marajó 1”, ocupam uma posição mediana. Melgaço – que ficou conhecido por causa das muitas reportagens denunciando a exploração sexual de meninas nas balsas de carga – está em último lugar na lista do país, na 5565a colocação.

É essa a realidade marajoara e só a partir dela se pode pensar a violência sexual contra crianças e adolescentes na região, diria em entrevista à Agência Pública a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 8a Região Elinay Melo, referindo-se especialmente ao momento em que a ministra Damares Alves, durante apresentação do programa “Abrace o Marajó”, em julho deste ano, disse que as meninas do arquipélago são estupradas porque não usam calcinha. Na ocasião, Damares chegou a propor a instalação de uma fábrica de calcinhas no local. “Eu acho que a fala da ministra tem dois problemas muito graves: primeiro que ela mais uma vez culpabiliza a vítima ao dizer que o problema está na calcinha. Repassa para a vítima e para as famílias que estão naquela condição de extrema vulnerabilidade, de ausência total do Estado e de condições mínimas de vida, a responsabilidade pela violência. E a outra coisa é quando ela diz que quer fazer uma fábrica de calcinhas. Levar investimentos para o Marajó para fazer uma fábrica. É novamente um olhar equivocado porque você não pode ir lá uma vez e voltar decidindo o que eles precisam. Eles são os atores, eles têm que dizer o que precisam. Lá existem comunidades tradicionais que vivem de determinada forma. Não posso chegar lá com ideias prontas. A fábrica de calcinhas é o exemplo claro do colonizador chegando lá e dizendo pro colonizado o que ele tem que fazer”, diz
a juíza (leia aqui a entrevista na íntegra), que em 2017 ganhou um prêmio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela sentença que responsabilizou uma empresa de transportes de carga pela exploração sexual de crianças por caminhoneiros em uma de suas embarcações, constatada em um flagrante da polícia na região próxima a Breves e Melgaço.

A irmã Henriqueta, que estava no local com a polícia, se lembra com tristeza do episódio: “Ali no estreito de Breves [de um lado do rio fica Breves e do outro Melgaço], existe um foco muito grande de exploração sexual. As nossas crianças sobem naquelas balsas e muitas descem com pequenos objetos, às vezes com pequenos alimentos, um litro de óleo diesel, em troca da exploração do seu corpo. Eu conversei bastante com as duas meninas que foram encontradas nessa balsa. A de 18 disse que desde os 5 anos de idade era explorada sexualmente em troca de comida. Hoje ela diz que é ‘prostituta da balsa’ e que seu sonho é casar com um gaúcho pra sair da miséria [as balsas de cargas muitas vezes atravessam o país, então passam por lá homens de todas as regiões]. A menina de 9 anos disse que subia desde que se entendia por gente, pra ganhar comida”. Leia a reportagem completa

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