“É muito difícil para a sociedade perceber o que está acontecendo, porque aparentemente as instituições estão funcionando, existe uma fachada legal...”
(Meus amigos me sacaneiam porque não uso Whatsapp e ainda uso e-mail. Mas o que eu quero mesmo é voltar a usar cartas).
Por Jadson Oliveira – jornalista/blogueiro – editor deste Blog Evidentemente
Caro companheiro Lustosa (Valdimiro Lustosa, também chamado Guri),
Há dias tento escrever alguma coisa sobre ‘A tão falada democracia... uma falácia”, espicaçado por seu artigo (‘reflexões’) aqui publicado no último dia 24/junho.
(É pena que este meu Blog Evidentemente é pouco visitado. Seu artigo teve apenas 91 acessos até hoje. Merecia mais).
Mas esse Corona, com o flagelo do confinamento mal feito e o genocídio anunciado, tem me deixado de saco cheio e me tirado a parca inspiração.
A verdade é que sempre tive pouca consideração pela tal da democracia. Um substantivo difícil de digerir. Me falta sempre um adjetivo para temperá-la.
Nos velhos tempos de militante comunista, era mais fácil. A gente tascava logo a “democracia burguesa” e estava consumada a condenação perpétua à dita cuja. Navegávamos em ilusões, utopias, escudando-nos nas certezas com as quais a juventude nos brindava. Éramos militantes, otimistas, mais alegres e mais felizes.
Agora, em se falando de Brasil, já entrando no declinar do lavajatismo – arrastando para a lama da história o bolsonarismo, seu filho dileto -, continuamos a nos debater em busca dum adjetivo.
Às vezes, também, dum substantivo: é o caso da mídia hegemônica (monopólios tradicionais dos meios de comunicação, Globo & Cia). Para eles, os monopólios, é mais simples: se os governantes são contra o império estadunidense, trata-se duma ditadura. Estão aí Venezuela, Cuba, Irã, China, Coreia do Norte;
Se são alinhados com o império, trata-se duma democracia: Brasil, Israel, Colômbia, Arábia Saudita, pra não falar no próprio Estados Unidos, “a maior (ou melhor?) democracia do mundo”.
RESSURGE A DEMOCRACIA: manchete de O Globo anunciando a vitória do golpe de 1964
Há ainda fascismo, viés fascista, autoritarismo, neoliberalismo, liberal fascista. Uns tresloucados por aí (extrema-direita, terraplanistas?) ainda falam, atualmente, no Brasil, da existência de comunismo no Estado brasileiro (certamente implantado ou incrementado pelo petismo). Santa ignorância! nesses tempos de notícias mentirosas aos milhões, instantâneas (fake news).
E mais: a conexão com o capitalismo. Você mesmo, companheiro, no seu artigo referido acima, destaca “os escandalosos lucros dos bancos brasileiros ou dos estrangeiros que operam no Brasil”, ao falar da nossa cruel realidade marcada pela desigualdade.
Destaca ainda no seu segundo artigo aqui postado no último dia 13 – ‘A ironia da Folha de S.Paulo’ -, ao se referir à Revolução Francesa. Você lembra que o “Terceiro Estado (a plebe), que era a maioria, sustentava os outros dois” (o primeiro e o segundo – o clero católico e a nobreza, respectivamente). “Assim é o capitalismo”, arremata.
Tal conexão está também em comentários de companheiros nossos/leitores do blog: Osvaldo Laranjeira: “Como alguém disse: "precisamos desmistificar um caminhão de ilusões da democracia capitalista". Creio que o problema está no adjetivo "capitalista". Pois enquanto o capitalismo vigorar jamais teremos uma democracia participativa e que mereça a velha formulação: do povo, pelo povo e para o povo. Também nunca veremos o tal Estado democrático de direito”.
Irenio Viana: “A democracia, verdadeiramente, é uma falácia mesmo, é a moneycracia”; Rubia Oliveira: “Democracia SÓ para os ricos. Pobre só tem O VOTO, mesmo assim, ERROU feio”; e Téo Chaves observa que “a democracia está submissa às armas, à ignorância, à desigualdade...”
Isso bate com uma reflexão que sempre me ocorre: não seria mais justo, mais esclarecedor, se ressaltar a vigência do sistema capitalista, ao invés do desgastado sistema democrático? Lembremos da memorável manchete do jornal O Globo, logo após o golpe militar de 31 de março de 1964: RESSURGE A DEMOCRACIA (foi dia 1º de abril ou 2 de abril?).
Mas, porém, todavia, companheiro Lustosa, volto aos adjetivos. (Não esquecer que, oficialmente, vivemos na chamada “democracia representativa”, doente terminal há décadas. Característica central: os eleitores votam e escolhem seus representantes de quatro em quatro anos. E adeus: na próxima eleição, nos vemos novamente).
Confesso ter uma simpatia especial pela chamada “democracia participativa” (ou “direta” – alô, companheiro Laranjeira). Conheci-a, um pouco, nas duas temporadas que passei em Caracas, 2008 (três meses) e 2012 (cinco meses): eleição todos os anos, dispositivo constitucional revogatório de mandato presidencial, povo nas ruas permanentemente, milícias populares, comunas populares, mídia contra-hegemônica a todo vapor contra os monopólios privados de comunicação.
Autoritarismo incremental, aplicado por dentro das leis e conduzido por líderes democraticamente eleitos
Centrando na conjuntura atual brasileira: golpe contra Dilma, governos Temer/Bolsonaro e, principal, descalabro resultante do genocídio sanitário e da crise econômica e política. Com o agravante: incapacidade da esquerda (ou centro-esquerda) – baleada pela campanha do suposto combate à corrupção - de interagir com as massas populares.
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos cunhou uma conceituação que, pelo que entendi, é bem esclarecedora para nossos dias: “democracia híbrida”. É uma meia democracia e meia ditadura. Com as características da alternativa abaixo, acho que dá pra entender (queria deixar um link aqui, mas não consegui localizar pelo Google. Vale a pena ler).
Outra, que achei espetacular, é dum grupo de estudiosos brasileiros, conforme um deles, o cientista político André Singer. Chama-se “autoritarismo furtivo”. Segue o resumo do próprio Singer (baseado em postagem do site Brasil247):
1 – “O autoritarismo furtivo é incremental, ele vai se dando continuamente, pouco a pouco. Todos os dias o Poder Executivo vai tentando alargar seus poderes e suprimir os contrapoderes. Vai tentando se sobrepor até o momento em que você imperceptivelmente cai em uma ditadura.
2 - A segunda característica é que ele justamente se dá por dentro das leis, não rompendo com as leis. Um exemplo bem fácil para nós aqui no Brasil é o impeachment da ex-presidente Dilma, porque eles usaram uma brecha que existia dentro das leis. O que esse processo gerou foi uma ruptura de democracia por dentro das leis.
3 - A terceira característica é que esse processo de autoritarismo furtivo é conduzido por líderes democraticamente eleitos, então não vem com uma força de fora do sistema político, como as Forças Armadas.
O resultado é que é muito difícil para a sociedade perceber o que está acontecendo, porque aparentemente as instituições estão funcionando, existe uma fachada legal, uma fachada de normalidade que é feita de propósito”.
É isso aí, Lustosinha, um forte abraço. Espero ajudar no seu esforço de reflexão. Agradeço por manter respirando este meu blog nesse malfadado confinamento. O qual, infelizmente, deve romper no tempo, pois o tal do distanciamento social segue capenga, sob os auspícios do (des)governo Bolsonaro/Guedes
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