Via site JOTA, por ANA POMPEU
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Ulysses Guimarães participou das Diretas Já e da elaboração da CF de 1988. Foto: Célio Azevedo/Fotos Públicas
Passadas três décadas da promulgação da Constituição de 1988, passou a circular pelo Executivo a tese de que a Carta autorizaria uma atuação das Forças Armadas como uma espécie de poder moderador. Na verdade, a Constituição cidadã foi parte do movimento de transição do regime militar ao democrático, de forma que a continuidade do processo democrático depende também da consolidação da prevalência do poder civil sobre o militar como substância da Carta Magna.
Esta posição é defendida por um grupo de juristas que lança o livro Forças Armadas e democracia no Brasil: a interpretação do artigo 142 da Constituição de 1988, apresentado pelo Observatório Constitucional e pelo JOTA. “A ruptura político-constitucional com o autoritarismo anteriormente protagonizado pelas Forças Armadas caracterizou as transições democráticas e norteou o caminho da institucionalização e da consolidação das novas democracias com o desejado distanciamento dos militares da atividade política”, diz a apresentação, escrita pelo professor e doutor em Direito Constitucional, André Rufino do Vale. Faça o download do ebook gratuitamente.
O artigo 142 dispõe que: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
Com organização de André Rufino, a obra conta com reflexões de Lenio Streck, Marcelo Casseb Continentino, Thomaz Pereira, Diego Werneck, João Trindade Cavalcante Filho, Leonardo Augusto de Andrade Barbosa, Roberto Carlos Martins Pontes, Alexandre Sankievicz, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira Marcelo Labanca Corrêa Araújo, João Paulo Bachur, Matheus Pimenta de Freitas, Jorge Octávio Lavocat Galvão, Sophia Guimarães, Sérgio Antônio Ferreira Victor e Eliardo França Teles Filho.
Eles enfatizam que a Constituição submeteu as Forças Armadas aos Poderes constitucionais e afastou os militares da política. Sob a nova ordem constitucional, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica passaram a responder ao Ministério da Defesa, sob a direção de um ministro civil.
“Assim, desde a redemocratização, as relações civis-militares foram continuamente aperfeiçoadas, criando as condições institucionais, próprias de democracias liberais, para o surgimento de uma nova geração de oficiais dedicados às tarefas profissionais e comprometidos com o regime democrático”, diz a obra.
André Rufino conta que a ideia do livro surgiu na semana seguinte à da reunião de 22 de maio, em que o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), teria dito que iria intervir no Supremo Tribunal Federal (STF). À época, a explosão do chefe do Executivo não era conhecida — foi publicada pela revista Piauí de agosto. Mas a crise institucional estava posta. A retomada da ideia do uso heterodoxo do dispositivo já havia sido lançada publicamente.
“A necessidade de firmar a posição correta sobre o entendimento ou significado do art. 142 foi o que impressionou mais os professores. Em determinado momento, depois de 30 anos, vem um jurista de renome, que de fato é, e defende algo completamente fora do que todo mundo entende”, enfatiza Rufino. A ideia apareceu justamente dessa incredulidade.
Em 28 de maio, o advogado Ives Gandra da Silva Martins publicou um artigo no Conjur cujo título é: Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes. Ele defende, no texto, que o artigo 142 dá “tratamento diferenciado, alargado” às Forças Armadas em relação às outras corporações.
No livro, Lenio Streck afirma que, “à exceção de regimes autoritários – impasses ou desacordos morais (políticos) entre Poderes passam pelo Judiciário – e mesmo ele é constitucionalmente limitado. Claro. É uma questão de democracia. De Estado de Direito. De princípios”.
Ele lembra, também, que, quando do julgamento da autorização da interrupção de gestação de anencéfalos, na ADPF 54, Gandra disse: “E, na hipótese de fazê-lo e de a Suprema Corte não acatar a anulação, caberia até mesmo a intervenção das Forças Armadas para restabelecer a lei e a ordem turbadas pela quebra de harmonia entre os Poderes da República, obrigando o Supremo Tribunal Federal a cumprir a Constituição”.
Tomaz Pereira e Diego Werneck são categóricos: intervenção militar é golpe. Eles defendem que trazer as Forças Armadas para resolver disputas políticas é fato recorrente da história brasileira, mas que essas são vozes antidemocráticas na essência. E, para eles, a invocação de artigos da própria Constituição de 1988 para tentar dar verniz de legalidade a arroubos autoritários é equívoco grave e sintomático.
“Faria algum sentido que os constituintes, pondo fim a mais de duas décadas de ditadura, tivessem ocultado na Constituição tal poder extraordinário das Forças Armadas – uma medida contrária à lógica democrática, escondida assim em uma mera menção genérica, sem maiores especificidades e sem qualquer regulação de seu exercício? Um cavalo de Troia invisível a tudo e todos, aguardando para se revelar três décadas depois – um misto de bomba relógio, máquina do tempo e alçapão, que, uma vez acionado, nos levaria de volta à tutela militar?”, provocam.
Especialista em Direito do Império, Marcelo Casseb diz que o poder moderador só existiu naquele período e, hoje, temos um sucedâneo de resolver conflitos, mas isso seria competência do Supremo, dentro das competências de conflitos jurídicos não existe mais poder moderador político.
“A pureza redacional dos dispositivos constitucionais, quando isolada do contexto jurídico e político da época em que vigoraram tais normas, ofusca significativamente o impacto de que se revestiu a (parcial) recepção da teoria do Poder Moderador na ordem constitucional brasileira”, diz, acrescentando que a previsão na Carta do Império se deu pela insistência de dom Pedro I, que não via com bons olhos uma Constituição que limitasse o exercício do poder político.
ANA POMPEU – Repórter em Brasília. Cobre Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Passou pelas redações do ConJur, Correio Braziliense e SBT. Colaborou ainda com Estadão e Congresso em Foco. Email: ana.pompeu@jota.info
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