quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Google deve fornecer IP de quem pesquisou sobre Marielle próximo ao dia do crime


 Via site JOTA,  por KARLA GAMBA

STJ confirmou decisão proferida pelo TJRJ. Google argumentava que pedido é genérico e desproporciona

A vereadora Marielle Franco, no plenário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. (Crédito: ASCOM/Câmara Municipal)

Por maioria de votos, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou nesta quarta-feira (26/8) que o Google Brasil deve fornecer informações como IPs e Device IDs de usuários que pesquisaram pelo nome e agenda da vereadora Marielle Franco nos dias que antecederam o crime.


A discussão ocorreu no âmbito do RMS 60698/RJ, recurso apresentado pela Google contra decisões anteriores da primeira e segunda instância da Justiça do Rio de Janeiro que determinavam a cessão dos dados.


O pedido de acesso aos dados foi feito pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), que requeria a lista dos IPs e Device IDs de usuários que pesquisaram entre os dias 10 e 14 de março de 2018 pelo nome “Marielle Franco”, e outras combinações como “Vereadora Marielle” e “Agenda vereadora Marielle”, além de “Rua dos Inválidos” e “Casa das Pretas”, local e endereço em que a vereadora cumpriu seu último compromisso antes de ser assassinada.


No STJ, a defesa do Google alegou que o pedido do MPRJ era genérico e desproporcional ao solicitar informações de um grupo de pessoas em que “a imensa maioria não tinha nada a ver com o caso”. A defesa sustentou ainda, citando o artigo 22 da lei do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que não havia norma jurídica no Brasil que autorizasse esse tipo de medida, que só era autorizada quando havia indício de envolvimento da pessoa com o crime investigado:


“Ao contrário de uma quebra de sigilo normal, essa ordem pressupõe um desnaturamento da própria natureza da plataforma. Aqui se pede uma espécie de engenharia reversa”, argumentou o advogado da Google, Eduardo Bastos Furtado de Mendonça, afirmando mais adiante que o sistema da empresa não havia sido concedido para “gerar” indícios ou provas de uma investigação criminal.


Representando o MPRJ, o procurador Orlando Belém contra-argumentou que não se tratava de interceptação e divulgação de dados sigilosos. Ele afirmou que não era possível identificar e individualizar os pedidos enquanto a investigação ainda estava em curso e não sabiam quem eram os possíveis envolvidos no crime. 


Belém disse ainda que o artigo 22, dispositivo do Marco Civil citado pela defesa do Google, não poderia ser interpretado isoladamente e que a mesma lei, em seu artigo 10, garantia a preservação da intimidade dos usuários. Ele ressaltou também que o artigo 5º da Lei Geral de Proteção aos Dados (LGPD) estabeleceu que os dados a serem fornecidos são dados anonimizados e a quebra de sigilo e identificação dessas pessoas depende de esclarecimento subsequente: 


“A plataforma Google não foi feita para tal finalidade, mas todos sabem que ela tem o armazenamento de centenas de informações acessíveis e cabíveis ao ponto de ter uma cessão imediata. Não se trata de uma situação ampla, é uma situação definida por tempo e período de dados consolidados. Todo dado que será ofertado e apresentado a fins de investigação são dados que vão depender de um esclarecimento subsequente para definição de quem é a pessoa. Portanto, nenhum dado fornecido inicialmente é um dado fornecido com a identificação do indivíduo”, alegou o procurador do MPRJ pedindo a manutenção das sentenças proferidas pela Justiça do RJ.


Relator destaca interesse público e não vê exposição de dados

No início da leitura de seu voto, o relator do caso, ministro Rogério Schietti Cruz, citou a legislação que reforça o direito à vida privada e a proteção à intimidade mas lembrou que o STJ vem reforçando a possibilidade de acesso aos dados quando se tratar de interesse público.


Schietti afirmou que na origem, a decisão do magistrado de 1º grau pela determinação do fornecimento dos dados não se trata de fornecimento de dados criptografados e que era necessário fazer a distinção entre quebra de sigilo de dados e interceptação. 


“A ordem judicial para a quebra dos registros dos sigilos, limitada por parâmetros de pesquisa em determinada região e por período de tempo específico não se mostra uma medida desproporcional. Ela tem como norte a apuração de gravíssimos crimes cometidos por agentes públicos contra a vida de três pessoas, mormente a de quem era alvo da emboscada, pessoa dedicada em sua atividade parlamentar à defesa dos direitos de minorias que sofrem com a ação desse seguimento podre da estrutura estatal fluminense, e não impõe risco desmedido dos usuários possivelmente atingidos pela diligência”, afirmou Schietti completando:


“Em nenhum momento eu identifiquei na investigação ou na ordem judicial qualquer direcionamento à revelação de nomes de pessoas, na verdade o que se pretendeu foi a revelação de IPs e Devices, dados que identifiquem correspondência de acesso à determinados aplicativos, que permitam de um universo maior chegar a um número reduzido de pessoas que possam ter relação com o fato, mas de nenhum modo a exposição”, concluiu o relator.


Schietti criticou ainda a Google pelo interesse em defender os usuários e disse que o mesmo tratamento não era dado quando se referia ao fornecimento de dados pessoais dos usuários para empresas com objetivos mercadológicos.


“Me causa uma estranheza essa extrema preocupação da empresa recorrente na preservação de sigilo de terceiros quando não se tem notícia de uma única pessoa que tenha se sentido incomodada com essa investigação feita pelo Ministério Público. Essas mesmas estruturas tecnológicas que nos invadem diariamente com fornecimento de nossos dados para empresas oferecerem serviços de vendas de produtos agora se colocam de maneira tão ferrenha contra uma simples investigação de dois assassinatos”, afirmou.


O voto do ministro Rogério Schietti Cruz foi bastante elogiado por seus colegas e seu entendimento foi seguido pela maioria deles. Acompanharam o relator os ministros Antonio Saldanha Palheiro, Reinaldo Fonseca, Ribeiro Dantas, Joel Paciornik, Felix Fischer, Laurita Vaz e Jorge Mussi. Foi voto vencido o ministro Sebastião Reis Júnior, que votou pelo acolhimento do recurso da Google.


Após o julgamento a empresa afirmou em nota que respeitava o trabalho das investigações mas lamentava o resultado, que contrariava, segundo eles, a proteção constitucional da privacidade:


“O Google lamenta a decisão tomada hoje pelo Superior Tribunal de Justiça. Reiteramos nosso respeito ao trabalho de investigação das autoridades brasileiras, com as quais colaboramos de modo consistente. Embora tenhamos atendido diversas ordens expedidas no caso em questão, entendemos que a discussão levada ao STJ envolve pedidos genéricos e não individualizados, contrariando a proteção constitucional conferida à privacidade e aos dados pessoais. Mais uma vez, o Google reafirma o compromisso com a privacidade dos brasileiros e está avaliando as medidas a serem adotadas, inclusive um eventual recurso ao Supremo Tribunal Federal.”

KARLA GAMBA – Repórter em Brasília. Cobre STJ, com foco especial na área de Saúde. Antes, passou pelas redações do Jornal O Globo e revista Época, cobrindo Palácio do Planalto nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, e pela redação do Correio Braziliense, onde cobriu Cultura. Email: karla.gamba@jota.info

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