Títulos comportam sempre um mundo próprio, complemento essencial de qualquer obra, capaz quando criativos de dar rédeas à imaginação, antecipar leituras, ampliar os sentidos. Sugestivo e esclarecedor é o título emprestado ao livro de Roberto Saviano. O leitor logo de cara irá a territórios milenares. Pensará em campos paradisíacos, em vales serenos, em planícies virgens, que se transformam em cenários dantescos, infernais, próprios para castigos vindos dos céus, de Deus ou de deuses vários, a destruir pecadores. E que ninguém olhe para trás, sob pena da morte e da cegueira.
O livro já mereceu filme dirigido por Matteo Garrone, e Saviano participou da elaboração do roteiro. Também é Gomorra, que ninguém perde um título desses. Paul Singer me disse que gostaria de ler uma resenha sobre o trabalho de Saviano, depois que ouviu minhas impressões em torno do livro. O filme não retrataria a complexidade da reportagem de Saviano, pensa o professor, ao menos se fossem verdadeiras as minhas análises. Reportagem é maneira de dizer. Pode ser isso e pode ser muito mais. Tem cara de romance, faz fronteira com a ficção sem, no entanto, deixar de vincular-se de modo intenso aos fatos.
O livro deixa o leitor estupefato com a proximidade entre o capitalismo e a máfia napolitana, a famosa Camorra. Há uma identidade profunda entre essa nova máfia e o modo de produção capitalista. Não apenas no sentido mais geral, mas na capacidade que tem a Camorra de acompanhar os movimentos contemporâneos do capital, inclusive na organização do trabalho, no tipo específico de exploração da mão-de-obra, na democratização do uso da cocaína pelo barateamento de seu custo de produção, na capacidade enorme de transnacionalização da droga e de outras mercadorias. A lógica do empreendimento criminoso camorrista, a mentalidade do boss coincide com o mais extremo neoliberalismo. "As regras ditadas, as regras impostas, são as do mercado, do lucro, da vitória sobre todo concorrente. O resto não existe".
Seguramente, o livro de Saviano nos leva a territórios desconhecidos. Ou, ao menos, não inteiramente revelados até agora. Quem poderia imaginar que o capitalismo de marcas - as famosas grifes -, antecipado por Paul Sweezy e Paul Baran no magistral Capitalismo Monopolista, viesse a fazer uma aliança tácita com a máfia napolitana? Saviano vai demonstrar que as grandes grifes do mundo do vestuário preferiram calar-se diante da investida da Camorra por conta da grande qualidade dos produtos que ela colocava no mercado - o que não desgastava as marcas - e porque, ao promover a divulgação das grifes, assegurava de alguma forma a presença delas no imaginário mundial e mantinha as vendas aquecidas, apesar de tudo.
Quem pensar em marcas originais ? em grifes autênticas ? pode tirar o seu cavalinho da chuva. Poderíamos parafrasear Walter Benjamin, e dizer que vivemos no tempo da reprodutibilidade técnica ? e os artífices dessa reprodutibilidade são os operários especializados da Camorra, que inundam o mundo com os produtos camorristas.
Há um episódio curioso no livro ? um operário extremamente especializado da máfia napolitana recebe a encomenda de preparar um tailleur feminino. Deram-lhe as medidas. Recomendaram muito esmero. E o operário, Pasquale, faz o trabalho com a sutileza de um ourives, de um estilista de renome mundial. Fez o tailleur com quase adoração, e teve um orgulho imenso ao terminá-lo. Nunca esqueceu das medidas, do corte da gola, dos milímetros dos pulsos. E menos ainda da calça. Chegara a passar as mãos por dentro das pernas e imaginara, como diz Saviano, o corpo nu que cada costureiro sempre imagina. Fez três daqueles tailleurs. Não sabia a quem estavam destinados. A Camorra sabia.
Numa noite napolitana, Pasquale está com os três filhos e a mulher, e mais o próprio Saviano, assistindo à televisão. De repente, Luisa, a esposa, aproxima-se da tela, coloca as mãos sobre a boca e solta um grito. Angelina Jolie pisava a passarela da noite do Oscar, vestindo um tailleur de seda branca, belíssimo, uma obra de arte. A obra de Pasquale, cuja confecção ela acompanhara de perto. Pasquale sentiu muita raiva, uma raiva impossível de extravasar. Não podia curtir a sua obra, não podia dizer a ninguém que fora ele o artista.
À noite do Oscar, Angelina Jolie veste uma roupa feita em Arzano, by Pasquale. Que ganhava 600 euros por mês. Ele saiu a andar pela rua. Luísa ficou em casa chorando. O trabalho, quando serve apenas para a pessoa não afundar, como é da característica de grande parte do trabalho capitalista, quando serve apenas à sobrevivência, gera, nas palavras de Saviano, ao falar de seu amigo Pasquale, "a pior das solidões."
A Camorra, se faz do negócio das drogas a sua alavanca principal, não se restringe a ela, portanto. São enormes os tentáculos dela no mundo do capitalismo. E, para além da violência, que está absolutamente presente, a máfia napolitana mantém antenas sensíveis para aplicar o capital resultante da droga e, às vezes, fazer de outros campos territórios férteis para a acumulação. Falamos das grifes têxteis. Mas poderíamos falar, também, do controle do negócio do cimento em toda a região napolitana. Um negócio de muitos milhões de dólares. Cimento para as obras de infra-estrutura, para as estradas, para as empresas imobiliárias, que podem também pertencer à Camorra.
Tentáculos que se espalham. Como a mercadoria do lixo, especialmente do lixo tóxico ou até mesmo cadáveres, tudo transacionado sem qualquer cuidado com o meio ambiente, fonte de lucros extraordinários, na esteira da lógica bruta, pura da mercadoria. Nada de valor de uso. Autêntico valor de troca, sem quaisquer outras considerações, muito menos de natureza humana.
Essa estrutura, esses tentáculos são regados com sangue. Não há exagero no que se diz. Embora, como diz Saviano, não seja necessário contar os mortos para entender a economia da Camorra, não há como negar, como ele também admite, sejam esses mortos o traço mais visível dessa economia. De 1979, ano em que Saviano nasceu, até 2005, foram 3.600 mortos ? mais do que a soma das vítimas do ETA na Espanha, do IRA na Irlanda e mais do que todas as mortes causadas pelo Estado na Itália no período.
A violência é essencial àquilo que poderíamos denominar acumulação primitiva da Camorra. Acumulação primitiva com uma presença impressionante em toda a Itália, Europa, e com laços profundos naturalmente com América Latina e China ? a primeira pela cocaína, a segunda pelos tecidos importados. Acumulação primitiva que, como se disse, tem uma capacidade enorme de se conectar com a contemporaneidade do capitalismo.
Tão violenta quanto as mortes, é a prática da máfia para fazer as misturas que barateiam a cocaína. Com as misturas, de três quilos de coca podem ser obtidos 200 quilos. A mistura é feita com cafeína, manitol, paracetamol, lidocaína, benzocaína e anfetamina. E até talco e cálcio. Para testar as misturas, usam cobaias humanas denominadas visitors, que provam se a mistura é danosa, que reação provoca e até que ponto é possível aumentar o pó. Esses visitors são pessoas desesperadas, heroinômanos. A heroína, lembra Saviano, é um mercado em queda livre, e os heroinômanos estão em extinção e cada vez mais desesperados. Por isso, não se importam de correr o risco. Misturas em doses equivocadas podem resultar em mortes, e muitas vezes resultam. É a Camorra, com sua lógica implacável.
Essas cobaias humanas é que permitirão que romanos, napolitanos, bolonheses, toda a Europa consumam a droga sem riscos. E por preços baixos. A democratização do consumo. Uma obra da Camorra. Que tanto revoltou Saviano, que se infiltrou na organização criminosa para desvendar a gravidade e extensão de sua presença na vida italiana e em boa parte do mundo. E ele, hoje ameaçado de morte, protegido pelo Estado italiano, pôde terminar o livro gritando:
"Malditos filhos-da-puta, eu ainda estou vivo!"
O que não é pouco para quem fez um livro como esse.
SAVIANO, Roberto. Gomorra: a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana / Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. 350 p.
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