sexta-feira, 10 de julho de 2020

TODA A SOLIDARIEDADE ÀS MÃES YANOMAMI NO CUIDAR DA ALMA DE SEUS BEBÊS



TODA A SOLIDARIEDADE ÀS MÃES YANOMAMI NO CUIDAR DA ALMA DE SEUS BEBÊS
NOTA DO CONSELHO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS
Em maio do corrente ano, três mulheres do grupo Sanöma, da etnia Yanomami foram afastadas da sua Aldeia denominada Auraris juntamente com seus bebês e levadas para Boa Vista, capital de Roraima, com suspeita de pneumonia. Quando internadas nos hospitais as suas crianças foram contaminadas de Covid-19, e em consequência vieram a óbito. 
Imediatamente, as mulheres indígenas foram apartadas de seus filhos sem saber que os corpos dos bebês seriam enterrados – e foram. É como se os corpos de seus bebês desaparecessem tornando para elas um peso ao voltarem para a aldeia sem levarem os corpos de seus filhos. Se isso ocorre é como se tivessem deixado na cidade uma parte delas mesmas, então ficariam a perambular sem rumo. 
Reza a tradição indígena que enterrar o corpo de um Yanomami é arrancá-lo do mundo dos humanos, tornando-se um processo inconcluso, sem paradeiro para a própria alma. O ritual mortuário, reahu, deve ser realizado na própria aldeia dos parentes do falecido, onde suas cinzas funerárias devem ser partilhadas entre seus parentes. 
Se a dor de milhares de famílias brancas, diante do protocolo de biossegurança, quando são informadas que os corpos de seus entes queridos foram enterrados sem que se permitam se despedir nesses tempos de pandemia, imagina as mulheres Yanomami que não puderam cumprir o ritual próprio de seus povos, onde em nenhuma hipótese se enterra um corpo. Registra-se uma cadeia de violência em seus territórios desde a destruição de suas casas na atualidade, onde a floresta é invadida e saqueada pelos garimpeiros; suas matas queimadas e o alimento escasso; os próprios indígenas contaminados pelas doenças dos brancos sendo desrespeitados como seres humanos numa sequência sem fim. Acrescente-se a isto tudo a falta de transparência, como foi o caso com essas mães, ao não serem comunicadas da morte de seus filhos nem ao menos consultadas sobre o destino dos corpos dos bebês num total desconhecimento das tradições de um povo. 
Para que o corpo de um indígena possa morrer para si e para a comunidade há um rito. Entre os povos indígenas os corpos de seus parentes amados que perderam vida passam por um ritual com celebrações na própria comunidade, onde recebem a presença de povos de outras aldeias fortalecendo laços. Essas cerimônias podem durar meses e até anos para então ocorrer à consagrada cremação. Após então, se dá o destino às cinzas e assim no cumprimento do rito o morto pode morrer para si e para a comunidade - descansando para o sagrado.
Desde o dia 09 de abril quando ocorreu a morte do primeiro adolescente Yanomami, de 15 anos, acometido de Covid-19, o desespero se multiplicou com sequente desrespeito aos povos indígenas e desconhecimento a tradição desses povos. O fato de o serviço público não informar aos povos indígenas sobre os riscos de contaminação, ao permitir que os bebês ficassem ao lado das mães, e, sobretudo não as consultasse sobre a destinação dos corpos de seus filhos ao morrerem, denota um comportamento desumano e desrespeitoso por parte do poder público que precisa urgentemente ser corrigido e a situação reparada.  
O Conselho Nacional dos Direitos Humanos ciente do seu papel de proteção dos direitos e garantias fundamentais, individuais, coletivos ou sociais previstos na Constituição Federal e/ou nos tratados e atos internacionais celebrados pela República Federativa do Brasil enfatiza a importância de dar especial atenção aos direitos e as necessidades das mulheres, jovens e crianças indígenas; assim como o direito coletivo e individual de manter e desenvolver as características e identidades étnicas e culturais distintas conforme consagrado na Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas para o que deve buscar a mediação cultural.
Ciente do envolvimento do Hospital Geral de Roraima, do Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazaré e do Hospital da Criança Santo Antônio apontamos a priori a fundamental importância para uma reestruturação das coordenações indígenas para que possam contar com intérpretes em seus quadros, a fim de orientar os familiares sobre a causa do óbito e destino do corpo como ponto focal do respeito aos povos originários. Assim também ao administrador do Cemitério Campo da Saudade para que providencie um espaço reservado aos corpos de indígenas da etnia Yanomami, para garantir a posterior identificação do local de sepultamento.
Ao prestarmos a justa e respeitosa solidariedade às mães indígenas que passaram pela singular situação, o CNDH busca mediar junto às instâncias afins que sejam garantidas políticas e serviços de qualidade no atendimento à saúde dos povos indígenas em todo o país; pautando que se proceda ao diálogo respeitoso diante de quaisquer providências a serem tomadas, considerando o próprio costume dos povos originários, onde a palavra é o documento; assim como a garantia da exumação dos corpos de todos indígenas vítimas de COVID, a exemplo do que está previsto no Plano Integrado de Contingência de Sepultamentos de Roraima; e, por fim, que os povos originários possam cumprir as celebrações do rito em respeito à memória dos seus mortos, a posteriori, sob as expensas do poder público como responsabilidade do Estado.

Brasília, 10 de julho de 2020.
Conselho Nacional dos Direitos Humanos - CNDH

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